domingo, 24 de março de 2013

Black Friday



- Você é feliz? - Renatinha perguntou com aquele sorrisinho no rosto.
- Ahhh cara, sei lá, ultimamente estou meio pra baixo, mas vamos indo né - César respondeu com aquela cara tímida dele.
- Bom, tenta ficar bem... Você é muito especial!
- Valeu Renatinha, valeu. Agora vou indo, já terminei meu projeto. - César disse com aquele olhar frio, dando um beijo no rosto dela.

César saiu por volta das 18h do trabalho. Ele era um dos grandes intelectuais de uma multinacional, trabalhava na área de publicidade da empresa. Com apenas 28 anos já ganhava mais do que muita gente que tem 40, e era adorado pelos seus chefes. Passava uma imagem de bom moço, estava bebendo pouco, não ia pras noitadas, morava sozinho num apartamento ali em Santana, na Dr. César, estava bem localizado, tinha um bom carro, um Honda Civic 0km. Seu trabalho lhe sugava bastante, e naquela altura da vida ele estava se sentindo muito sozinho, muito mesmo. Via pouco seus amigos e as pessoas que ele via bastante, com certeza amigos não eram. Ele sabia que o pessoal no trabalho o invejava, mas ia seguindo vivo, ainda que com um sentimento de tristeza latente.

Era sexta-feira. Chovia uma garoa fina, estava bem nublado em São Paulo, ele foi pro seu ap. Chegou lá e fez o que fazia todas as noites. Ficava sozinho, estático. Não tinha muita motivação pra nada, ele não se sentia muito bem, isso era sempre, mas naquele dia bateu errado, ele não estava mais aguentando aquele sentimento que lhe corroia, como a ferrugem corrói o metal. Ele pensava como Bukowski pensava, achava que a vida e ele não se davam bem, ele tinha que comer a vida pelas beiradas, era como se engolisse baldes de merda. Ele tinha uma boa vida, mas a solidão é um dos piores malefícios de todos, te faz surtar. Em uma fração de segundos ele teve uma ideia meio maluca, mas que naquele momento lhe pareceu sensata.

Saiu de casa, eram cerca de 20h, ainda garoava naquela sexta fria. Quando ele era mais novo ele costumava se drogar bastante, assim como muitos publicitários, portanto ele ainda conhecia alguns lugares que não prestavam. Passou numa biqueira, ali no Jardim Brasil, resolveu fazer umas compras. Pegou cerca de 15 gramas de cocaína, um smack de heroína. Pensou em pegar maconha, mas ela não serviria pra concretizar sua ideia. Passou no mercado, chegou a lista de compras:

- 1 garrafa de whisky Black Label
- 1 garrafa de vodka Absolut
- 1 maço de cigarros Marlboro vermelho

Pronto. Ele estava pronto pra concretizar sua ideia, estava realmente carregado naquela noite, seria "a noite", a sua última noite de sofrimento. Logo aquilo tudo iria acabar, as pessoas, a falsidade, o cansaço do mundo, a solidão, tudo que existia de ruim logo se tornaria somente um corpo num caixão, sem mais preocupações, sem mais problemas com mulheres...

Chegou em casa, fez um balanço da sua vida. Lembrou dos seus diversos traumas, chegou a pensar em mulheres, mas isso ele já tinha desistido de vez faziam uns 5 anos. Eram longos 7 anos sem namorada, só no sexo casual, ele abraçou a ideologia de "ficar com quem você não gosta e se você começar a gostar, termine", de uma forma bem consciente. Mulheres, definitivamente não eram o motivo daquele suícidio, talvez inconscientemente, mas na cabeça dele, isso não era com certeza. Era o resto do mundo mesmo, aquilo havia cansado ele. Já não tinha mais paciência pra ficar de papinho, não queria mais assistir o mundo girar, pessoas nascerem, pessoas morrerem, isso tudo havia cansado ele. "Você é feliz... Que papinho mais chato, se fuder viu" César pensava enquanto acendia o primeiro cigarro da noite. Parece que tudo tem que ter um objetivo, e isso cansava ele, ele já não tinha mais planos, já tinha dinheiro, comia mulheres bonitas, já tinha vivido tudo o que a vida pode lhe oferecer, não fazia mais sentido estar ali né?

Pois bem, deu inicio ao processo todo. Abriu a garrafa de whisky, serviu um longo copo, colocou uns cubos de gelo. A vodka ele guardou no congelador "talvez nem tome essa merda hahahaha", pensava enquanto entornava o whisky. Decidiu começar com a heroína e depois ir mandando cocaína em cima de cocaína, certamente ele teria a tal overdose, e sozinho, iria morrer. Ele nunca tinha injetado heroína, mas resolveu tentar. Pegou uma seringa no quarto e uma colher e um pouco de água na cozinha. "Não deve ser muito diferente dos filmes", jogou a heroína na colher, pegou água, e acendeu um isqueiro em baixo, pra tentar diluir o pó. Quando o pó parecia bem diluído, pegou a seringa, deu uma boa puxada. Dispensou a colher, pegou um cadarço do seu tenis Nike, amarrou o braço esquerdo com força, até a circulação parar. Pegou a seringa com o braço direito e injetou a droga de uma só vez na veia que estava mais pulsante. Bateu a letargia de forma instantânea, ele desmorou no sofá. A respiração ficou rápida e ofegante, mas ele ainda estava consciente. Passado uns dez minutos se levantou, bebeu mais um pouco do whisky. Foi no aparelho de som, pensou numa boa trilha sonoro pro momento, cogitou The Doors com The End, mas desistiu. Resolveu morrer ouvindo aquele album que ele sempre idolatrou, Dark Side of the Moon do Pink Floyd. Colocou o cd em modo de repetição "pronto, Floyd a noite toda", acendeu mais um cigarro e foi em direção aos pinos de cocaína. Despejou um deles, que tinha 1.5g em cima da mesa da sala. Nesse momento tocava o finalzinho de Breathe

For long you live and high you fly
But only if you ride the tide
And balanced on the biggest wave
You race towards an early grave.

Montou cerca de 8 carreiras bem gordas e grandes. Nesse momento ele percebeu que a noite ia ser longa "nem morrer é fácil hahahaha" pensou e mandou as duas primeiras, já bebendo mais whisky, matando o copo. Continuou fumando seus cigarros, resolveu pegar logo a garrafa de whisky, naquele ponto nada mais importava, muito menos beber no copo ou no gargalo. Bebeu mais um pouco, mandou mais duas carreiras.

Ele foi mandando carreiras, fumando e bebendo. O primeiro pino já havia se esgotado, estava na metade do segundo. Estava agitado, não ficava sentado por nada, andava de um lado pro outro, atônito, mexendo no cabelo, bufando, os olhos se revirando. Nesse momento tocava o finalzinho de Money

Money, so they say
Is the root of all evil today.
But if you ask for a raise it's no surprise that they're
giving none away.

"Será que escrevo uma carta de despedida?" pensou enquanto tomava seu whisky. Na verdade, na verdade mesmo, não tinha de quem se despedir, ele havia se tornado um misantropo, odiava a tudo e a todos, não falava mais com a sua família, não fazia sentido se despedir de ninguém "péssima ideia, péssima ideia mesmo!" e mandou mais duas carreiras de cocaína, e depois de assoar o nariz mais duas, matando o segundo pino.

Olhou pra um quadro branco que ele tinha na sua sala, que ele escrevia seus pensamentos em suas noites de solidão. No momento não havia nada escrito ali, decidiu deixar um recado. Pegou o canetão preto e escreveu em letras garrafais:

"ME DESCULPEM POR TER MORRIDO! AO MENOS MORRI FAZENDO AQUILO QUE ME CONFORTA, QUE SE NÃO ME DEIXA FELIZ, AO MENOS RASGA OS CULHÕES DA MINHA TRISTEZA!"

Abriu o terceiro pino, montou mais 8 carreiras. A garrafa de whisky estava chegando na metade, ele não dava sinais de vômito, talvez por causa da cocaína, não se sabe. Ainda tinha muitos cigarros, mais da metade certamente. Cheirou mais duas carreiras, já não sentia mais o rosto todo. Deu mais uma golada no whisky, e acendeu mais um cigarro quando tocava Brain Damage

The lunatic is in my head.
The lunatic is in my head
You raise the blade, you make the change
You re-arrange me 'till I'm sane.
You lock the door
And throw away the key
There's someone in my head but it's not me.
And if the cloud bursts, thunder in your ear
You shout and no one seems to hear.
And if the band you're in starts playing different tunes
I'll see you on the dark side of the moon.

"Eu te verei no lado negro da lua..." e mandou mais duas carreiras, seguido de mais um trago da bebida e continuando aquele cigarro que acabara de acender. Continuou mandando bastante, ele estava bem resistente aquela noite, mas droga não seria problema, ele tinha o suficiente para matar umas duas pessoas, era fato de que ele morreria naquela noite, era só questão de tempo e de força de vontade. E quando um suicida está determinado ele consegue se matar, é que as pessoas desistem muito rápido.

Quando ele abriu o quarto pino bateu uma bad trip. Começou a pensar nas coisas, chegou a chorar, pensou em todos os seus traumas, os abandonos, as surras, as frustrações e em tudo que pudesse lhe fazer chorar naquela noite. Assoou o nariz ainda mais, tirando catarro pra abrir espaço pro pó. Segurou o choro por um momento, mandou mais duas das gordas e longas carreiras. Nesse momento ele começou a cair na real do que estava fazendo, encarou que sim, ele ia morrer, ele ia para um mundo completamente desconhecido, ia saber como é estar do outro lado. O disco do Floyd já estava tocando tudo de novo, e nesse momento tocava On the Run

Live for today, gone tomorrow, that's me, HaHaHaaaaaa!

Aquele som frenético, aquele barulho de helicóptero, tudo aquilo o deixava ainda mais paranóico e assustado. O medo bateu, ele bebia o whisky feito água, já estava quase no fim da garrafa. Ainda tinha uns 6 cigarros, mas cocaína, isso ele ainda tinha seis pinos fechados. Conseguiu com muito esforço matar o quarto pino da noite "caralho, já nem entra mais essa merda!" reclamava do nariz entupido. Matou a garrafa de whisky, abriu o quinto pino, despejou sobre a mesa, montou mais 8 carreiras. Foi na cozinha, pegou a garrafa de vodka, voltou pra sala, mandou mais duas carreiras gordas. Por um instante teve medo da morte, parecia que foi uma atitude precipitada, talvez só fosse uma sexta feira amaldiçoada, negra, o tempo chuvoso talvez tivesse deixado aquele dia mais triste, talvez no sábado as coisas melhorassem. Cheirou mais duas carreiras, bebeu um trago da bebida, agora vodka, e repensou "não não, as pessoas não vão mudar, tudo vai ser a mesma coisa, se não piorar né?" e decidiu prosseguir com a sua ideia suicida, quando tocava The Great Gig in the Sky, já no finalzinho...

And i am not frightened of dying,
Any time will do, i don't mind.
Why should i be frightened of dying?
There's no reason for it,
You've gotta go sometime

Terminou o quinto pino e então desmaiou, com a garrafa de vodka pela metade e uns 3 cigarros ainda no maço. O cheiro de morte subiu naquele apartamento bem decorado e César finalmente conseguiu escapar daquilo que o corroia.

Zaratustra

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