Sabem
quando você odeia uma pessoa com tanta força que fica cego e nem percebe as
merdas que está fazendo, ou que está por fazer? Algo arredio, quase animal, eu
já passei por isso, a maioria das pessoas já passou por isso. Mas com certeza
era a primeira vez que eu havia visto Luciane daquele jeito. Quando começamos a
namorar, ela era quieta como uma asiática (apesar de ruiva), bonita,
pequeninha, sempre concordava com tudo, sempre foi assim, mas eu não sei por
que naquele dia quente de novembro ela pirou como o Tony Montana do Scarface,
quando ele cheira uma montanha de cocaína e começa a atirar contra todo mundo
aos berros de “MORRAM SEUS FILHOS DAS PUTAS, MORRAM!” (acho que essa não é a
fala exata, mas foda-se), e ela me pegou de surpresa quando eu abri a porta de
casa com uma garrafa de whisky barato na mão direita e vejo um copo estilhaçar
no batente da porta. Meus olhos meio fechados e cansados de repente pareceram
explodir de espanto.
-
SEU FILHO DA PUTA! EU DESCOBRI TUDO SEU MERDA!
- O
que, o que você descobriu!?
Mal
terminei a frase e ela continuou atirando coisas. Me defendia como dava, às
vezes colocava a garrafa na frente, mesmo assim os pratos cortaram meus dedos e
principalmente os cotovelos. Sempre que eu tentava perguntar o que diabos eu
havia feito ela tacava mais louça. Alguns cacos voaram no meu rosto, vi meus
copos caros pra whiskys caros que eu havia pago quarenta pratas em cada serem
arremessados, alguns na parede, outros nos meus braços. Não tinha mais nada de
louça quando ela veio pra cima de mim com uma faca de fatiar bife, que era
usada raramente. Ela tentou me golpear com a direita, usei meu braço esquerdo
pra proteger e a garrafa de whisky barato pra bater no antebraço dela, fazendo
a faca cair no chão. Nisso ela começou a me socar, e eu ainda sem saber o que
estava acontecendo. Até que ela parou, ofegante. Me olhou com desprezo e
começou a chorar. Dei um gole no whisky, tentei me recompor também.
-
Luciane, o que diabos aconteceu hoje!? Que merda que eu fiz!?
-
Carlos... Como você pode viver com esse remorso na sua cabeça!? Você é um
canalha filho de uma puta! Minha própria irmã!
-
Opa, peraí, peraí. O que que tem a sua irmã?
-
Oras, você sabe! Ela me contou tudo o que aconteceu naquela noite, mês passado.
Quando a gente foi naquela balada na Vila Olímpia. Ela me disse tudo, com
detalhes! Seu porco!
Ela
puxou um belo catarro e cusparou com força no meu rosto. Limpei com a minha
camiseta, que obviamente também estava suja de sangue, ou seja, iria pro lixo
de qualquer forma. Eu lembrava da balada, sim, eu estava lá, com Luciane e
Luana. Mas eu não fiz nada! Juro!
-
Lu, eu juro que não fiz nada! Nem encostei na sua irmã. A gente foi lá pra
ajudar o término de namoro dela, fazendo ela sair e tudo mais. Ela até flertou
com uns caras, eu ajudei inclusive.
-
Hahahaha, você é mesmo muito canalha! Não se finja de bobo Carlos, não se finja
de bobo!
-
Não estou fingindo, é a mais pura verdade!
- Ah
é!? Você se lembra a hora em que fui embora? Lembra que deixei vocês dois lá e
você me veio com papinho furado de “vou ajudar ela a arrumar uma boa foda”...
Cê lembra, seu puto!?
Honestamente,
eu não me lembrava. Não sabia o que dizer. Eu nem sei como diabos eu cheguei em
casa naquela noite. Misturar absinto com vodka realmente me trazia problemas
inúteis e que poderiam ser evitados.
-
Olha, eu não lembro, mas eu acordei em casa. Achei que tinha dado tudo certo
ué. Ninguém me ligou no dia seguinte dizendo que estava puto com a minha
atitude – eu disse, dando mais uma golada no whisky.
-
CULPA DESSA PORRA AQUI! – ela berrou e pegou a garrafa de whisky, balançando na
minha frente em sinal de desaprovação total – CULPA DESSA MERDA! Quando você
bebe demais você é o pior sujeito. Sério, não está mais dando!
-
Caralhos, mas ao menos me conte o que Luana te disse! Que porra!
-
Basicamente, depois que eu fui embora você voltou pra lá. Encontrou ela, a
agarrou, tentou beijar ela, ela recusava e recusava. Aí você bateu no rosto
dela, dando tapas violentos, e começou a gritar “SUA VADIA DO CARALHO! SUA
PUTA! VACA! VAI SE FODER, SAI DAQUI!” Ela saiu, você correu atrás dela, até que
um segurança percebeu que estava uma situação estranha e te separou dela. Ele
te bateu no estômago e te colocou pra fora. Nisso Luana continuou lá dentro, e
quando ela saiu, você havia sumido.
-
Então eu não trepei com ela? – eu disse, mais calmo.
-
Não! Mas sua atitude é imperdoável! Olha Carlos, nunca reclamei da sua bebida,
nunca mesmo, você me conhece. Mas isso está fugindo do controle. Você está
afetando todos à sua volta com essa merda. E a nossa filha!? Você não pensa na
nossa filha!?
Caralhos,
era óbvio que eu sempre pensava na minha filha. Eu evitava beber na frente dela
no começo, mas agora que ela tinha seis anos eu estava mais descompromissado
com isso. Era errado sim, eu sei, mas eu não podia evitar. Eu queria poder
beber na minha casa.
- Eu
sei Luciane, é errado. Eu sei disso.
-
ENTÃO MUDA ISSO CARALHO! MUDA!
-
Você sabe que isso é difícil pra cacete pra mim...
-
Então não sei – ela disse, me interrompendo – dá um jeito. Não quero você aqui
em casa até resolver isso. Sai fora!
-
Mas eu não tenho pra onde ir! Sabe que investi tudo nessa casa!
-
VOCÊ QUE SE FODA, EU VOU PEDIR A PORRA DO DIVÓRCIO!
Nisso
ela pegou a faca do chão e a apontou pra mim. Eu levantei os braços em sinal de
rendição, mas ela ia andando com aquela faca em direção a porta, até que eu saísse.
Quando eu estava na rua ela me olhou e fechou a porta.
- AO
MENOS ME DÊ MEU WHISKY! – eu gritei.
Ela
abriu a porta e atirou a garrafa contra mim. Mais um hematoma pra coleção, mas
ao menos a garrafa não quebrou. Saí vagando dali sem rumo, encarando os
vizinhos com olhar de reprovação e que haviam ouvido toda a briga e a histeria
inédita de Luciane.
2.
Peguei
meu celular, olhei e pensei pra quem eu ligaria. Achei justo ligar pra Luana
primeiro, assumir meu erro e pedir desculpas. Além de esclarecer exatamente o
que havia ocorrido naquela balada.
- Oi
Luana?
-
Pois não, quem fala?
- É
o Carlos. Tudo bem?
- É,
tô de boa... E você?
-
Nada bem – eu disse, pensando que quando alguém responde secamente como ela
respondeu, nunca é um bom sinal – olha, a Luciane me disse o que fiz com você
naquele dia na Vila Olímpia. Eu fui mesmo tão imbecil!?
-
Sim, eu nem quero lembrar disso. Eu tive que contar, afinal ela é minha irmã, e
vai saber se você não faz isso quando ela não está por perto.
-
Disso nem eu sei...
-
Pois é, e ela é nova e bonita, com certeza vai arrumar coisa melhor do que
você. E outra, a Pati não merece um pai como você. Carlos, você pode até ter
colocado a semente, mas nunca foi um pai.
-
Porra Luana, me desculpe. Eu juro que fiz sem querer isso. Eu não tenho palavras
pra descrever como me sinto mal, tanto com você quanto com a sua irmã.
-
Não aceito as suas desculpas Carlos. Pega um copo, joga ele no chão e quebra.
Agora pede desculpas e vê se ele volta ao normal. O copo é seu casamento, sua
família. Você está destruindo eles. Sabe o que é crescer sem uma figura
paterna!?
- De
certa forma sim... Mas de qualquer maneira, preciso que você me ajude com a
Luciane. Ela me expulsou de casa. Eu não tenho pra onde ir Luana!
-
Você deveria ter pensado nisso antes de beber como bebeu! Porra cara, você sabe
que tem problemas com bebida e fica insistindo nisso! Cara vê se cresce!
-
Puta merda Luana, foi um deslize...
-
Uma porra! – ela disse me interrompendo – você faz isso quase todo fim de
semana, e algumas vezes durante a semana. Não se faz de vítima, seu puto!
-
Acho que ir pra sua casa está fora de cogitação também, né?
-
Tchau Carlos.
Ela
desligou o telefone, e como todo imbecil ainda fiquei um tempo com a linha muda
falando, quase que balbuciando “Alô, alô, alô”. Em vão... Tudo foi em vão. Ela
me odiava, minha mulher me odiava. Eu estava sem chão e sem rumo, eu não sabia
o que fazer. Minha roupa ensangüentada não me ajudava a andar pelas ruas, todos
ficavam me olhando como se eu fosse um assassino. De certa forma eu era. Eu destruía
as pessoas sem matar elas, o que pode ser muitas vezes pior. Seria mais honesto
ser um matador de aluguel sóbrio do que um alcoólatra violento. Ao menos eu
saberia o que eu estava fazendo. “Não dessa vez Carlos, não dessa vez...”
pensei balançando a cabeça negativamente, com vergonha e ira de tudo. Sentei na
calçada e continuei a beber minha garrafa de whisky, pensando que se isso
causou os problemas, talvez isso causasse as soluções. Ledo engano, ledo
engano...
3.
Quando
a garrafa já estava um pouco mais vazia tomei coragem de ligar pra minha mãe.
Ela havia casado de novo, eu não me dava muito bem com meu padrasto, mas eu não
tinha opção, eu precisava de um lugar pra morar enquanto o divórcio rolaria.
Luciane não me aceitaria de volta. Disquei o número, era um telefone fixo. Quem
atendeu foi meu padrasto.
-
Alô – ele disse.
- Oi
Raul, tudo bem?
- É,
tô de boa.
-
Olha, minha mãe está aí? Preciso mesmo falar com ela.
-
Tudo bem, só um segundo.
Ouvi
ele gritando de longe “LÚCIA! É O CARLOS!” Passados alguns segundos ela me
atendeu.
- Oi
filho.
- Oi
mãe, tá tudo bem aí?
- É,
tô de boa. E aí, o que você quer?
-
Porra mãe, estou com um problema. A Luciane me chutou de casa. Eu meio que fiz
uma merda com a irmã dela. Digamos que eu bebi demais e...
- E
aí você ficou agressivo e quebrou alguma coisa e berrou e xingou ela. Acertei?
-
Sim, mais ou menos isso... Preciso de um lugar pra ficar.
-
Você está bêbado? Sua voz está alterada.
-
Bebi um pouco mãe, mas só um pouco.
-
Sim eu sei, é sempre só um pouco. Sabe Carlos, eu sou sua mãe, eu te ajudei em
muitas horas da sua vida. Te ajudei sempre que você arrumou confusão, seja por
causa de bebida, seja por causa de qualquer outra coisa. Mas porra, você já
está com trinta e dois anos! Obviamente a sua síndrome de Peter Pan não passou
ainda. Tem medo de crescer, filho.
-
Porra mãe, são pequenos deslizes... No geral sou um bom filho.
-
Você já foi um bom filho, hoje você é um fracasso movido a álcool.
-
Por favor mãe, juro que vou sossegar, sério. Dessa vez é de verdade.
-
Sem chance filho, depois da briga que você teve com Raul eu perdi toda a
confiança. Caralho Carlos, no meu casamento!? Sério mesmo que você precisava
estragar o meu casamento!? Gritar com pessoas, xingar o Raul abertamente,
quebrar as mesas e as cadeiras... Foi um desastre. Aquela foi a sua última
chance.
-
Mãe, eu pedi desculpas por aquilo.
-
Sim, e isso não vai resolver. O casamento vai ser sempre marcado pelo seu
showzinho particular. Eu cansei, sério. Dorme na rua, você vivia dizendo que
podia dormir em sarjetas que não se incomodaria. Faz isso.
-
Porra mãe...
-
Porra mãe é o caralho – ela me interrompeu – agora eu tenho que desligar que
tenho uma janta pra fazer. Tchau e não ligue mais.
Ela
assim como Luana desligou na minha cara também. Meu pai estava morando em outro
estado, estava com a vida ganha. A gente perdeu contato. Ele havia se
estabelecido lá e depois de inúmeras festas em que eu fiz ele passar vergonha,
era natural que eu fosse esquecido. Aceitei isso e continuei a beber e andar
sem destino.
4.
Minha
garrafa de whisky acabara. Passei no mercado, ainda sujo e ensangüentado,
comprei uma garrafa de conhaque. Abri ela e continuei as ligações. Liguei pra
vários amigos meus, pedia abrigo e sempre tomava um grande não na cara. Era
mesmo deprimente ver o meu estado. Eu nunca pensei que chegaria naquele ponto,
mas a vida acaba sendo isso, se você vai indo a favor da maré, os anos passam e
você nem percebe o que foi construído e o que foi destruído. Eu havia destruído
muito mais do que construído, e a minha estrutura frágil derrubou facilmente.
Ex-namoradas também não queriam me ajudar, ou não podiam por estarem casadas. E
não as julguei, eu era o traste. Foi tudo culpa minha, e por mais que eu
pedisse desculpas, nada se resolveria assim, tão fácil. A melhor forma de pedir
desculpas era me tornando um sujeito melhor, mas eu não conseguia me ver assim.
Lembrei da minha amiga Helena que uma vez me disse “você vai perder todo mundo
que é importante na sua vida se continuar agindo dessa forma”, e ela tinha
razão. Foi exatamente isso que aconteceu. Eu perdi todo mundo, eu me dediquei a
algo que sim, sempre estava ali, mas que mais me atrapalhava do que me ajudava.
Servia como uma anestesia, na hora tudo ficava bem, mas o dia seguinte era
péssimo. A ressaca física era o menor dos problemas, sempre tive problemas com
ressacas morais.
Peguei
o metrô e desci na estação da Luz, ainda com a minha garrafa de vodka. Paguei
as trinta pratas pelo pernoite num hotel sujo e cheio de baratas e ratos. Como
eu estava sem nenhuma outra roupa, apenas tomei um banho frio (uma vez que não
tinha água quente) e vesti minha cueca, que ainda estava intacta. Coloquei a
garrafa no criado-mudo, ao lado da cama. Sentei e comecei a ver as fotos da
minha filha e da minha (futura) ex-esposa. Elas transmitiam tanta alegria e
serenidade, uma paz completa mesmo com tudo o que eu fazia, com tudo o que eu
havia feito. Parecia que elas estavam se afogando e ainda assim tinham forças
pra nadar contra a correnteza com um sorriso no rosto e determinação. A questão
é que elas tinham que me carregar. E isso afetava elas, não somente elas, mas a
todos que estavam a minha volta. Sorri ao ver as fotos, dei mais uma golada na
vodka, deixando a garrafa no chão dessa vez. Deitei a cabeça no travesseiro e
comecei a chorar, chorar como soluços, choros desesperados, aos berros. Fazia
muito tempo que eu não chorava, eu queria que ao menos essas lágrimas fossem de
alegria e não de remorso.
Carlos Reis