domingo, 18 de maio de 2014

Deslizes e remorso



Sabem quando você odeia uma pessoa com tanta força que fica cego e nem percebe as merdas que está fazendo, ou que está por fazer? Algo arredio, quase animal, eu já passei por isso, a maioria das pessoas já passou por isso. Mas com certeza era a primeira vez que eu havia visto Luciane daquele jeito. Quando começamos a namorar, ela era quieta como uma asiática (apesar de ruiva), bonita, pequeninha, sempre concordava com tudo, sempre foi assim, mas eu não sei por que naquele dia quente de novembro ela pirou como o Tony Montana do Scarface, quando ele cheira uma montanha de cocaína e começa a atirar contra todo mundo aos berros de “MORRAM SEUS FILHOS DAS PUTAS, MORRAM!” (acho que essa não é a fala exata, mas foda-se), e ela me pegou de surpresa quando eu abri a porta de casa com uma garrafa de whisky barato na mão direita e vejo um copo estilhaçar no batente da porta. Meus olhos meio fechados e cansados de repente pareceram explodir de espanto.

- SEU FILHO DA PUTA! EU DESCOBRI TUDO SEU MERDA!
- O que, o que você descobriu!?

Mal terminei a frase e ela continuou atirando coisas. Me defendia como dava, às vezes colocava a garrafa na frente, mesmo assim os pratos cortaram meus dedos e principalmente os cotovelos. Sempre que eu tentava perguntar o que diabos eu havia feito ela tacava mais louça. Alguns cacos voaram no meu rosto, vi meus copos caros pra whiskys caros que eu havia pago quarenta pratas em cada serem arremessados, alguns na parede, outros nos meus braços. Não tinha mais nada de louça quando ela veio pra cima de mim com uma faca de fatiar bife, que era usada raramente. Ela tentou me golpear com a direita, usei meu braço esquerdo pra proteger e a garrafa de whisky barato pra bater no antebraço dela, fazendo a faca cair no chão. Nisso ela começou a me socar, e eu ainda sem saber o que estava acontecendo. Até que ela parou, ofegante. Me olhou com desprezo e começou a chorar. Dei um gole no whisky, tentei me recompor também.

- Luciane, o que diabos aconteceu hoje!? Que merda que eu fiz!?
- Carlos... Como você pode viver com esse remorso na sua cabeça!? Você é um canalha filho de uma puta! Minha própria irmã!
- Opa, peraí, peraí. O que que tem a sua irmã?
- Oras, você sabe! Ela me contou tudo o que aconteceu naquela noite, mês passado. Quando a gente foi naquela balada na Vila Olímpia. Ela me disse tudo, com detalhes! Seu porco!
Ela puxou um belo catarro e cusparou com força no meu rosto. Limpei com a minha camiseta, que obviamente também estava suja de sangue, ou seja, iria pro lixo de qualquer forma. Eu lembrava da balada, sim, eu estava lá, com Luciane e Luana. Mas eu não fiz nada! Juro!
- Lu, eu juro que não fiz nada! Nem encostei na sua irmã. A gente foi lá pra ajudar o término de namoro dela, fazendo ela sair e tudo mais. Ela até flertou com uns caras, eu ajudei inclusive.
- Hahahaha, você é mesmo muito canalha! Não se finja de bobo Carlos, não se finja de bobo!
- Não estou fingindo, é a mais pura verdade!
- Ah é!? Você se lembra a hora em que fui embora? Lembra que deixei vocês dois lá e você me veio com papinho furado de “vou ajudar ela a arrumar uma boa foda”... Cê lembra, seu puto!?

Honestamente, eu não me lembrava. Não sabia o que dizer. Eu nem sei como diabos eu cheguei em casa naquela noite. Misturar absinto com vodka realmente me trazia problemas inúteis e que poderiam ser evitados.

- Olha, eu não lembro, mas eu acordei em casa. Achei que tinha dado tudo certo ué. Ninguém me ligou no dia seguinte dizendo que estava puto com a minha atitude – eu disse, dando mais uma golada no whisky.
- CULPA DESSA PORRA AQUI! – ela berrou e pegou a garrafa de whisky, balançando na minha frente em sinal de desaprovação total – CULPA DESSA MERDA! Quando você bebe demais você é o pior sujeito. Sério, não está mais dando!
- Caralhos, mas ao menos me conte o que Luana te disse! Que porra!
- Basicamente, depois que eu fui embora você voltou pra lá. Encontrou ela, a agarrou, tentou beijar ela, ela recusava e recusava. Aí você bateu no rosto dela, dando tapas violentos, e começou a gritar “SUA VADIA DO CARALHO! SUA PUTA! VACA! VAI SE FODER, SAI DAQUI!” Ela saiu, você correu atrás dela, até que um segurança percebeu que estava uma situação estranha e te separou dela. Ele te bateu no estômago e te colocou pra fora. Nisso Luana continuou lá dentro, e quando ela saiu, você havia sumido.
- Então eu não trepei com ela? – eu disse, mais calmo.
- Não! Mas sua atitude é imperdoável! Olha Carlos, nunca reclamei da sua bebida, nunca mesmo, você me conhece. Mas isso está fugindo do controle. Você está afetando todos à sua volta com essa merda. E a nossa filha!? Você não pensa na nossa filha!?
Caralhos, era óbvio que eu sempre pensava na minha filha. Eu evitava beber na frente dela no começo, mas agora que ela tinha seis anos eu estava mais descompromissado com isso. Era errado sim, eu sei, mas eu não podia evitar. Eu queria poder beber na minha casa.
- Eu sei Luciane, é errado. Eu sei disso.
- ENTÃO MUDA ISSO CARALHO! MUDA!
- Você sabe que isso é difícil pra cacete pra mim...
- Então não sei – ela disse, me interrompendo – dá um jeito. Não quero você aqui em casa até resolver isso. Sai fora!
- Mas eu não tenho pra onde ir! Sabe que investi tudo nessa casa!
- VOCÊ QUE SE FODA, EU VOU PEDIR A PORRA DO DIVÓRCIO!

Nisso ela pegou a faca do chão e a apontou pra mim. Eu levantei os braços em sinal de rendição, mas ela ia andando com aquela faca em direção a porta, até que eu saísse. Quando eu estava na rua ela me olhou e fechou a porta.

- AO MENOS ME DÊ MEU WHISKY! – eu gritei.

Ela abriu a porta e atirou a garrafa contra mim. Mais um hematoma pra coleção, mas ao menos a garrafa não quebrou. Saí vagando dali sem rumo, encarando os vizinhos com olhar de reprovação e que haviam ouvido toda a briga e a histeria inédita de Luciane.

2.

Peguei meu celular, olhei e pensei pra quem eu ligaria. Achei justo ligar pra Luana primeiro, assumir meu erro e pedir desculpas. Além de esclarecer exatamente o que havia ocorrido naquela balada.

- Oi Luana?
- Pois não, quem fala?
- É o Carlos. Tudo bem?
- É, tô de boa... E você?
- Nada bem – eu disse, pensando que quando alguém responde secamente como ela respondeu, nunca é um bom sinal – olha, a Luciane me disse o que fiz com você naquele dia na Vila Olímpia. Eu fui mesmo tão imbecil!?
- Sim, eu nem quero lembrar disso. Eu tive que contar, afinal ela é minha irmã, e vai saber se você não faz isso quando ela não está por perto.
- Disso nem eu sei...
- Pois é, e ela é nova e bonita, com certeza vai arrumar coisa melhor do que você. E outra, a Pati não merece um pai como você. Carlos, você pode até ter colocado a semente, mas nunca foi um pai.
- Porra Luana, me desculpe. Eu juro que fiz sem querer isso. Eu não tenho palavras pra descrever como me sinto mal, tanto com você quanto com a sua irmã.
- Não aceito as suas desculpas Carlos. Pega um copo, joga ele no chão e quebra. Agora pede desculpas e vê se ele volta ao normal. O copo é seu casamento, sua família. Você está destruindo eles. Sabe o que é crescer sem uma figura paterna!?
- De certa forma sim... Mas de qualquer maneira, preciso que você me ajude com a Luciane. Ela me expulsou de casa. Eu não tenho pra onde ir Luana!
- Você deveria ter pensado nisso antes de beber como bebeu! Porra cara, você sabe que tem problemas com bebida e fica insistindo nisso! Cara vê se cresce!
- Puta merda Luana, foi um deslize...
- Uma porra! – ela disse me interrompendo – você faz isso quase todo fim de semana, e algumas vezes durante a semana. Não se faz de vítima, seu puto!
- Acho que ir pra sua casa está fora de cogitação também, né?
- Tchau Carlos.

Ela desligou o telefone, e como todo imbecil ainda fiquei um tempo com a linha muda falando, quase que balbuciando “Alô, alô, alô”. Em vão... Tudo foi em vão. Ela me odiava, minha mulher me odiava. Eu estava sem chão e sem rumo, eu não sabia o que fazer. Minha roupa ensangüentada não me ajudava a andar pelas ruas, todos ficavam me olhando como se eu fosse um assassino. De certa forma eu era. Eu destruía as pessoas sem matar elas, o que pode ser muitas vezes pior. Seria mais honesto ser um matador de aluguel sóbrio do que um alcoólatra violento. Ao menos eu saberia o que eu estava fazendo. “Não dessa vez Carlos, não dessa vez...” pensei balançando a cabeça negativamente, com vergonha e ira de tudo. Sentei na calçada e continuei a beber minha garrafa de whisky, pensando que se isso causou os problemas, talvez isso causasse as soluções. Ledo engano, ledo engano...

3.

Quando a garrafa já estava um pouco mais vazia tomei coragem de ligar pra minha mãe. Ela havia casado de novo, eu não me dava muito bem com meu padrasto, mas eu não tinha opção, eu precisava de um lugar pra morar enquanto o divórcio rolaria. Luciane não me aceitaria de volta. Disquei o número, era um telefone fixo. Quem atendeu foi meu padrasto.

- Alô – ele disse.
- Oi Raul, tudo bem?
- É, tô de boa.
- Olha, minha mãe está aí? Preciso mesmo falar com ela.
- Tudo bem, só um segundo.

Ouvi ele gritando de longe “LÚCIA! É O CARLOS!” Passados alguns segundos ela me atendeu.

- Oi filho.
- Oi mãe, tá tudo bem aí?
- É, tô de boa. E aí, o que você quer?
- Porra mãe, estou com um problema. A Luciane me chutou de casa. Eu meio que fiz uma merda com a irmã dela. Digamos que eu bebi demais e...
- E aí você ficou agressivo e quebrou alguma coisa e berrou e xingou ela. Acertei?
- Sim, mais ou menos isso... Preciso de um lugar pra ficar.
- Você está bêbado? Sua voz está alterada.
- Bebi um pouco mãe, mas só um pouco.
- Sim eu sei, é sempre só um pouco. Sabe Carlos, eu sou sua mãe, eu te ajudei em muitas horas da sua vida. Te ajudei sempre que você arrumou confusão, seja por causa de bebida, seja por causa de qualquer outra coisa. Mas porra, você já está com trinta e dois anos! Obviamente a sua síndrome de Peter Pan não passou ainda. Tem medo de crescer, filho.
- Porra mãe, são pequenos deslizes... No geral sou um bom filho.
- Você já foi um bom filho, hoje você é um fracasso movido a álcool.
- Por favor mãe, juro que vou sossegar, sério. Dessa vez é de verdade.
- Sem chance filho, depois da briga que você teve com Raul eu perdi toda a confiança. Caralho Carlos, no meu casamento!? Sério mesmo que você precisava estragar o meu casamento!? Gritar com pessoas, xingar o Raul abertamente, quebrar as mesas e as cadeiras... Foi um desastre. Aquela foi a sua última chance.
- Mãe, eu pedi desculpas por aquilo.
- Sim, e isso não vai resolver. O casamento vai ser sempre marcado pelo seu showzinho particular. Eu cansei, sério. Dorme na rua, você vivia dizendo que podia dormir em sarjetas que não se incomodaria. Faz isso.
- Porra mãe...
- Porra mãe é o caralho – ela me interrompeu – agora eu tenho que desligar que tenho uma janta pra fazer. Tchau e não ligue mais.

Ela assim como Luana desligou na minha cara também. Meu pai estava morando em outro estado, estava com a vida ganha. A gente perdeu contato. Ele havia se estabelecido lá e depois de inúmeras festas em que eu fiz ele passar vergonha, era natural que eu fosse esquecido. Aceitei isso e continuei a beber e andar sem destino.

4.

Minha garrafa de whisky acabara. Passei no mercado, ainda sujo e ensangüentado, comprei uma garrafa de conhaque. Abri ela e continuei as ligações. Liguei pra vários amigos meus, pedia abrigo e sempre tomava um grande não na cara. Era mesmo deprimente ver o meu estado. Eu nunca pensei que chegaria naquele ponto, mas a vida acaba sendo isso, se você vai indo a favor da maré, os anos passam e você nem percebe o que foi construído e o que foi destruído. Eu havia destruído muito mais do que construído, e a minha estrutura frágil derrubou facilmente. Ex-namoradas também não queriam me ajudar, ou não podiam por estarem casadas. E não as julguei, eu era o traste. Foi tudo culpa minha, e por mais que eu pedisse desculpas, nada se resolveria assim, tão fácil. A melhor forma de pedir desculpas era me tornando um sujeito melhor, mas eu não conseguia me ver assim. Lembrei da minha amiga Helena que uma vez me disse “você vai perder todo mundo que é importante na sua vida se continuar agindo dessa forma”, e ela tinha razão. Foi exatamente isso que aconteceu. Eu perdi todo mundo, eu me dediquei a algo que sim, sempre estava ali, mas que mais me atrapalhava do que me ajudava. Servia como uma anestesia, na hora tudo ficava bem, mas o dia seguinte era péssimo. A ressaca física era o menor dos problemas, sempre tive problemas com ressacas morais.

Peguei o metrô e desci na estação da Luz, ainda com a minha garrafa de vodka. Paguei as trinta pratas pelo pernoite num hotel sujo e cheio de baratas e ratos. Como eu estava sem nenhuma outra roupa, apenas tomei um banho frio (uma vez que não tinha água quente) e vesti minha cueca, que ainda estava intacta. Coloquei a garrafa no criado-mudo, ao lado da cama. Sentei e comecei a ver as fotos da minha filha e da minha (futura) ex-esposa. Elas transmitiam tanta alegria e serenidade, uma paz completa mesmo com tudo o que eu fazia, com tudo o que eu havia feito. Parecia que elas estavam se afogando e ainda assim tinham forças pra nadar contra a correnteza com um sorriso no rosto e determinação. A questão é que elas tinham que me carregar. E isso afetava elas, não somente elas, mas a todos que estavam a minha volta. Sorri ao ver as fotos, dei mais uma golada na vodka, deixando a garrafa no chão dessa vez. Deitei a cabeça no travesseiro e comecei a chorar, chorar como soluços, choros desesperados, aos berros. Fazia muito tempo que eu não chorava, eu queria que ao menos essas lágrimas fossem de alegria e não de remorso.

Carlos Reis


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Conversa, somente mais uma conversa



- Legal você ter me recebido hoje na sua casa Carlos. É mesmo uma boa casa.
- Tudo bem, ela é pequena, mas pra mim está bom – eu disse e comecei a beber assim que me sentei. Era vodka pura, da garrafa.
- Até que pra um cara de trinta e três anos você está bem. Tem seu apartamento próprio, tem um bom emprego e é um solteirão sem filhos. O que você acha disso tudo?
- Olha Helena, vou ser sincero – ofereci uma bebida pra ela, ela recusou pra variar – gosto da minha vida, mas acho no mínimo bizarro que todos meus amigos estejam casados e com filhos e com famílias estruturadas, tirando um ou outro divórcio, que eu chamo de acidente de percurso.
- Mas Carlos, eu achei que isso foi opção sua. Não imaginava que você os invejava de uma certa forma.
- Sim, eu invejo eles em alguns pontos, eles me invejam em outros. O ser humano nunca está plenamente satisfeito com o que tem, e muitas vezes precisamos fazer escolhas, somente isso, e não podemos ter tudo o que queremos. E a senhorita sabe disso – levantei minha garrafa e dei mais uma golada, que desceu rasgando.
- Quer falar sobre mulheres?
- Prefiro não, o que quero deixar registrado nessa conversa é que não me adequo fácil e sou extremamente chato, e isso sempre me fudeu. Agora eu colho o que eu plantei.
- Você ainda assim, mesmo com esses poréns, é um cara satisfeito e feliz? Digo no geral, como pessoa.
- Sim, eu estou bem. Afinal eu ainda posso beber. Eu ainda escrevo e ganho uma boa grana. Quando quero ficar mais tranqüilo fumo um bom charuto. Por vezes saio, mas acho que estou a um passo da loucura.
- E por qual motivo?
- Não tenho mais vontade de sair de casa. No início era preguiça, depois foi misantropia, depois letargia, depois sei lá mais o que. E agora mal saio, meus amigos estão sumindo, eu estou perdendo eles aos poucos, e isso tudo é culpa minha, e somente minha. Eles correram atrás, mas eu os afastei demais. E depois que todos casaram e se estabilizaram, a distância aumentou, agora é inevitável. Posso dizer que tenho conhecidos do trabalho, e alguns colegas de infância. Mas meus amigos eu matei, por culpa minha.
- Caralho Carlos, isso é terrível. Acho que você é maluco assim por falta de amor, só pode, porque vejo uma apatia e um desinteresse em você. É quase uma coisa blaze dos cinemas franceses, manja?
- Manjo sim Helena – dei outra golada – Posso dizer que sou meio apático. Não sei exatamente aonde eu comecei a errar pra chegar onde estou, pra ficar assim, mas penso que não foi falta de amor. Sempre tive uma boa atenção dos meus pais, principalmente da minha mãe. Sempre fui o filhinho caçula, aquele que sempre tinha razão sobre o mais velho. Vai ver isso que me fodeu.
- Acho que você acabou sendo mimado demais, e isso sempre gerou uma carência enorme em você, e isso ia se espalhando pras outras pessoas. Afinal, todas sabiam que você era um carente de merda.
- É verdade. Sempre fui. Lembro que quando eu era mais novo, eu fazia tempestade em copo d’água o tempo inteiro. Qualquer coisinha e eu surtava, começava a beber e ia parar só uns quatro dias depois. Julgava demais, sem pensar se eu estava certo ou errado.
- Sim, você sempre foi irredutível. Te conheço desde infância cara. Você sempre foi assim, desde pequeno. Lembra aquele caso em que a Angélica disse que ia no cinema com uma amiga e você ficou puto?
- Lembro sim – mais uma golada na vodka pura, já estava ficando mais alterado – eu tinha só dezesseis anos, era um ciumento imbecil.
- Mas você nunca deixou de ser ciumento, você só se fazia de forte. E eu sempre soube disso.
- É verdade, eu me fazia de forte. Mas com o tempo eu fui desencanando de verdade. Fui perdendo a fé nas pessoas, fui parando de contar com elas. Eu criei meu próprio escudo de proteção.
- Funcionou por um tempo...
- Funcionou algumas vezes eu diria – interrompi ela e dei mais uma golada – porque eu mantinha ele uns meses, aí aparecia alguém, eu abria, depois eu me fodia e fechava de novo. E o processo se repetia. Parece que quanto mais você foge das pessoas, mais elas querem entrar na sua vida. E isso é bom ou ruim.
- É bom, emoções são coisas saudáveis Carlos. Você tem que aceitar isso.
- Tudo bem, mas se for pra entrar, quebrar tudo e sair fora, é melhor que nem aparecesse.
- Isso tem a ver com mulheres? Ou com amigos?
- Com os dois, posso até incluir família ai no bolo. Qualquer relação humana está sujeita a isso. E a senhorita sabe, dona Helena hahahaha
- Nem me fale. Lembra daquele ex-namorado meu, aquele que me fodeu. Até que eu fui na sua casa, a gente tomou um porre e eu comecei a chorar de soluçar umas 6h da manhã hahaha
- Eu ainda avisei que ele não era uma boa coisa. Ainda bem que hoje você está casada. E filhos?
- Calma Carlos, calma... Tenho só trinta anos hahaha
- Calma o caralho – dei uma golada, rindo na seqüência – acho que essa é a idade. O problema é ele né? hahahah
- Não, ele está louco pra ser pai, sério! – ela riu e fez um gesto com a mão do tipo “deixa disso”
- Ok ok hahahaha
Ficamos mais um momento em silêncio. Acho que ambos havíamos desabafado sobre alguns assuntos. Eu pra variar, acabei falando demais, como sempre.
- Vou embora Carlos – Helena me disse, já se levantando – Promete pra mim que você não vai beber muito hoje?
- Tudo bem, valeu a visita...

Ela saiu, deitei no sofá e retornei a bebedeira. Mas uma conversa é sempre bom pra desabafar.

Carlos Reis

A ponte



Sentou naquela borda da ponte naquela madrugada chuvosa e fria e solitária na cidade de São Paulo
Olhou para baixo e viu o asfalto de uma avenida muito movimentada, e mesmo pelo fato de ser madrugada, ainda havia carros que voavam baixo por ali
Na sua mão direita uma garrafa de vodka barata
Na sua mão esquerda um cigarro paraguaio
Na sua mente um turbilhão de idéias que eram péssimas em geral, sendo que boas mesmo eram quase nulas
Não sabia se voltava ou se jogava, se enfrentava a vida ou se fugia dela, se aceitava as imposições ou se revoltava contra elas
A dúvida era cruel quanto a isso, seu cigarro não era mais tragado por causa da chuva, mesmo assim ele gostava de segurá-lo, pelo simples prazer de segurar um cigarro
Golava a vodka, golava a vodka, golava a vodka... E pensava, e foi isso que ele fez durante a vida toda, e por isso perdeu muita coisa
Carros importados com pessoas felizes e bonitas e bem vestidas e bem-sucedidas e mulheres loiras e magras com os dentes brancos e colares nos pescoços
E homens fortes e com gel nos cabelos, barbas rentes e muito bem feitas, olhos claros e donos de estabelecimentos e prontos pra criarem filhos para o sucesso
Filhos de carros zero quilômetro e de cursinhos particulares e boas faculdades, fumando boa maconha, cheirando boa cocaína e curtindo a juventude até os vinte e cinco anos
Festas de faculdades, transas irresponsáveis. Facilidade
Ele não teve nada disso, somente a vodka, a boa e velha vodka barata, sempre ela, sempre ela. E agora a borda da ponte
“Não vou me entregar tão fácil assim, não vou mesmo” ele disse determinado a continuar incomodando a visão de tudo aquilo que lhe incomodava a visão
Tentou voltar os pés pra dentro da ponte, mesmo com a chuva e ainda segurando a garrafa de vodka e o cigarro apagado
Escorregou nessa tentativa falha, caiu da borda da ponte em direção à avenida movimentada, sem tempo de pensar muita coisa, sem tempo de gritar por socorro
Como uma cena de filme, caiu numa fração de segundo, não pensando em mais nada além de fechar os olhos, sorrir sem mostrar os dentes podres e abraçando a garrafa de vodka
(sem largar o cigarro apagado)
Caiu em cima de um carro importado, morreu na hora, mas morreu feliz

Ele nunca vai saber disso, mas ao menos ele conseguiu incomodar um pouco aqueles que a ele tanto incomodavam

Carlos Reis

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A vadia e o pedido de desculpas



Eu estava sentado na varanda do meu apartamento, na verdade era um kitnet, na verdade era uma suíte, mas tinha uma varanda bacana, ali na Rua Tuiutí, região leste de São Paulo. Pagava razoavelmente caro, mas bebia barato, a suíte era boa. Simples. Mas tinha uma cama de solteiro, um frigobar, um forno elétrico, uma escrivaninha em que eu batia meus textos no velho notebook, ainda uma TV a cabo, de LCD. Além disso, o valor era fixo, com todas as contas inclusas. A varanda dava direto pra rua, eu via as pessoas andando apressadas, umas indo em direção ao metrô pra voltarem pra casa, outras iam ao shopping que havia ali do lado. Eu bebia rum com coca e fumava cigarros paraguaios. Era por volta de umas 19h de uma sexta-feira. Havia trabalhado o dia todo, enfim havia arrumado um emprego que me providenciasse uma boa grana, apesar da correria eu gostava dele. Naquele sábado eu estaria de folga (eu trabalhava sábado sim e sábado não), e a idéia era me embebedar um pouco e depois tentar bater um conto. Eu tinha recebido meu salário, mas estava evitando sair de casa, afinal, era o primeiro fim de semana depois do quinto dia útil, tudo estaria um completo inferno. Até o puteiro do fim da rua estava com fila (mesmo sendo malditas 19h!), imaginem os bares, imaginem o shopping! “Por Deus, nem fodendo que boto os pés pra fora daqui, nem fodendo...” eu pensei sorrindo de leve, feliz por estar ali, no meu canto, meu sossego, sem barulhos, nem pessoas. Dei mais um gole no meu drink, outra tragada no cigarro e disse amém.
Levantei da minha cadeira, me espreguicei e decidi que já estava bêbado o bastante pra começar a escrever. Qualquer coisa serviria. A escrita não é uma necessidade, é um hobby, é algo pra gastar o tempo. A diferença da escrita pra Ioga, é que a escrita te enlouquece, a Ioga não. Abri meus olhos após a espreguiçada, dei mais uma olhada na rua e vi uma garota apressada atravessando a rua. “Merda...” pensei. Era Aline, uma vadia que fiquei por um tempo. Ela era bacana, ficamos um mês, mas ela era muito vadia, não gosto de namorar vadias, por isso chutei ela após o primeiro mês. Mas por algum motivo que eu jamais vou entender, ela ainda gostava de mim, e me perseguia pra conversar. Nunca nego conversa com as pessoas, eu simplesmente não procuro. A questão é que se alguém quiser conversar, por mim tudo bem. E com ela eu fazia isso. Mas percebi que ela estava tentando me reconquistar, ao menos é o que eu achava. Enfim, voltei pro quarto, montei mais uma dose e tomei bem rápido. Após meu último gole ouço as batidas na porta. Era a dona Vera, que cuidava da casa.
- Carlos! Carlos! Tem visita!
- Fala que eu não estou dona Vera!
- Sinto muito Carlos, eu vi você chegando a menos de uma hora... Já disse que você está aqui!
Coloquei uma camiseta (nada como ficar sem camisa na varanda quando está calor) e abri a porta.
- Porra dona Vera...
- Ela é da polícia? – me perguntou com um olhar penetrante.
- Não não... pior, ex- ficante/namorada/esposa ou sei lá o que ela acha que tem comigo. Eu julgo amizade, mas não sei o que passa na cabecinha doente e vadia dela.
- Vixi... Ferrou! – ela disse dando risada com a mão direita na boca – seria melhor a polícia.
- Com certeza dona Vera, com certeza – eu disse já colocando o chinelo.
- Você também tem muito rolo com mulher Carlos. Tem que dar uma sossegada! – ela disse, me acompanhando pelo corredor em que havia outros quartos.
- Meu problema com mulheres não é o número delas. Uma mulher louca pode te foder mais do que dez normais...
Retruquei dona Vera enquanto ela já se sentava no sofá da sala e eu descia as escadas do prédio pra buscar Aline na porta. “Merda, eu só queria escrever!” pensei balançando a cabeça negativamente.

2.

Abri o portão, dei um beijo no rosto dela, ela me puxou e me deu um abraço contra a minha vontade. Retribui um pouco, depois me desvencilhei dela de forma sutil.
- Como você está Carlos?
- Bem, e você?
- Também... Na verdade eu queria conversar com você, isso se você não estiver ocupado.
- Bom Aline, me desculpe, mas como você pode ver eu estou um pouco bêbado e planejava escrever alguma coisa.
- Tem alguém aí com você?
- Claro que não, você sabe que escrevo sempre sozinho.
- Nesse caso eu quero falar com você. É mesmo muito importante, vai ser rapidinho, logo logo você vai poder escrever, eu juro. Por favor, vai...
- Tudo bem, entra ai.
- Valeu! – ela disse e me abraçou de novo.
Subimos, eu na frente e ela me acompanhando. Passamos pela sala, apresentei a ela pra dona Vera como “amiga” Aline. Amiga é a melhor palavra. Na dúvida eu estava com uma amiga no meu quarto. Sim, eu transei com a Fulana, uma amiga minha. Rótulos são complicados pois no geral tem prazo de validade. Amizade pode durar por anos, ou até mesmo a vida toda. Além disso, você não precisa ficar explicando quando você apresenta a garota pra outra pessoa. Como quando fui casado e dizia “essa é minha esposa”, me bombardeavam com perguntas que eu estava cansado de responder. Mas eu era mais jovem e mais estúpido do que sou hoje, era diferente. Enfim, fomos pro quarto. Ela sentou na cama, peguei uma cerveja pra ela e pra mim mantive a dose de rum com coca. Sentei na cadeira da escrivaninha.
- E aí, desembuça – eu disse dando uma talagada.
- Ai Carlos, não sei se você lembra do Marcos... O carinha que eu estava ficando.
- Lembro sim – eu disse pensando “OHHHHH MEU DEUS, LÁ VAMOS NÓS!”
- Então, a gente terminou. E pior que eu gostava dele, ele era um bom cara.
- Aline, é uma pena que você tenha terminado, mas você não tem amigas mulheres pra ficar falando disso? Sei lá, se reúnam pra falar mal dele. Eu sou homem, mal conhecia o sujeito. Não vou servir pra esse tipo de desabafo. Aliás, nenhum homem hétero serve pra isso.
- Eu sei Carlos, mas você sempre foi um sujeito tão compreensivo. Sempre gostei de falar com você, desde quando ficamos. Tanto que mesmo você me chutando aceitei manter a amizade.
- “Aceitei” seria se eu tivesse pedido – eu disse sarcasticamente, fazendo o sinal de aspas com os dedos médios e indicadores de ambas as mãos.
- Nossa você continua sempre estúpido... – ela disse virando a cerveja – Não cansa disso?
- Não. A verdade é estúpida. A mentira é gentil. Entenda como quiser cara – dei mais um gole no meu drink.
- Enfim, mesmo você sendo estúpido, você é um cara bacana. Precisava te ver. A gente podia sair hoje, o que você acha? – ela disse passando a mão no cabelo, ajeitando de leve.
- Eu tenho meu texto pra bater Aline...
- Bate ele na segunda! Você precisa se divertir, afinal a gente trabalha a semana inteira pra isso – ela riu, levantou a cerveja e deu um gole.
- Primeiro que eu não tenho dia pra escrever, eu simplesmente escrevo quando bem entendo. Já aconteceu de eu acordar no meio da noite pra ir ao banheiro e ter idéia de texto. Não voltei a dormir até terminar ele – dei uma golada, matando o drink – e segundo que acho que esse tipo de coisa se faz com as suas amigas mulheres. Se uma mulher me chuta, chamo meus amigos homens pra beber.
- Vai dizer que você não fica meio assim que eu saia pra beber com as meninas? Pode ser que eu arrume um cara... Não hesitaria de pegar ele se fosse bonito – ela disse rindo, tomando mais cerveja.
Levantei, montei mais um drink, peguei um cigarro. Ofereci pra ela, ela recusou. Sentei na cadeira da varanda, acendi um cigarro e chamei ela pra me acompanhar. Ela ficou de pé olhando a calçada.
- Escuta aqui Aline – nisso ela olhou pra mim – tivemos o nosso momento, foi bem bacana, você é uma garota muito bonita, pode arrumar zilhões de caras por aí. Sério mesmo, eu não tenho ciúmes do próximo cara, assim como não tive do Marcos – finalizei com uma tragada no cigarro e uma golada no drink.
Ela me olhou por um tempo. Tomou mais cerveja. Me olhou de novo, como se dissesse com os olhos “eu tenho ciúmes de você, seu estúpido”, mas isso era infundado, eu mal trepava. Eu bebia, escrevia, curtia as facilidades de morar perto do centro de São Paulo, trabalhava e, quando saia, eram coisas leves, com os amigos, algo como uma Pizza Hut, um rodízio de comida japonesa. Porra, ela tinha ciúmes era do meu notebook.
- Carlos, seguinte: Não me preocupa se você tem ciúmes ou não de mim – “mentiiiiiiiraaaaaa...” pensei – porque eu não tenho ciúmes de você – “mentiiiiiiiraaaaaa...” pensei de novo – minha questão é que acho que nosso ciclo não se encerrou. Acho que ainda podemos acrescentar muito um ao outro.
Nisso até esqueci o fato de que ela era uma vadia. Ela disse aquilo com uma sinceridade tremenda. E me pareceu bem mudada, muito diferente daquela mulher pós-divórcio que eu havia ficado anos atrás. Ou melhor, eu tinha mudado, e minha mudança acabou mudando ela. Bizarro pensar assim, mas julgo como possível. Mesmo assim sei lá. Faltava algo nela. Sempre que eu penso em namoro, eu preciso de alguns pré-requisitos e um negócio que se chama “algo”. Eu nomeei assim. Já me disseram que isso é “química”, “paixão” ou ainda “amor”. O que é eu não sei, o que sei é que isso é muito raro, e ela, naquele momento não tinha esse “além”. Não queria que ela ficasse mal. Mas porra, eu tinha um texto pra bater, meu texto era minha prioridade.

3.

- Preciso de mais um drink – eu disse, deixando meu cigarro no cinzeiro – quer outra breja?
- Sim, quero sim, valeu.
Montei mais um drink. Olhava pra parede, olhava pra varanda, via ela e pensava em como tirar aquela mulher da minha casa. Eu sempre fui rude demais nesses casos, mas eu tentaria amaciar com ela.
Peguei a cerveja e o drink, voltei pra varanda. Entreguei pra ela a cerveja, dei uma golada no drink, tragada no cigarro e disse.
- Aline, confesso pra você que na época que ficamos eu tinha uma visão diferente sua. Pra ser bem honesto, eu ainda tinha essa visão até você entrar aqui hoje.
- Que visão? – ela interrompeu.
- Deixa pra lá... – eu disse pensando “OLHA A MERDA QUE EU FIZ NESSA PORRA!”
- Não não Carlos, eu quero saber, vai fala.
- Ok, eu achava que você era uma... vadia.
Ela me olhou enfurecida. Na hora imaginei aquela garrafinha de cerveja voando na minha testa. Ou um chute direto nas bolas. No melhor dos casos, um cuspe no rosto. Mas não, ela somente ficou enfurecida.
- Porra Carlos, você é um completo imbecil! Seu babaca, alcoólatra de merda!
- Isso me xinga, me xinga a vontade e respira fundo vai – eu disse, gesticulando os braços como um movimento de respiração e fazendo o processo na esperança de que ela fizesse também.
- ALCOOLATRA! VIADO! CUZÃO! FILHO DA PUTA! PAU PEQUENO! FRACASSADO!
- Isso, isso, pode falar – eu disse, agora já bebendo meu drink.
- Você está fodido, vou espalhar pra todo mundo que você tem o pau pequeno! E... e... e... e que é ruim de cama também!
- Tudo bem Aline, tudo bem. Posso continuar agora? Tá mais calma? Bebe a sua cerveja vai, bebe – eu virei de leve a garrafa na boca dela, pegando por baixo.
- Tudo bem, seu merda! Desembuça!
- Ok, obrigado. Enfim, eu achava isso que você acabou de ouvir, mas com essa conversa eu senti que quando ficamos estávamos em momentos diferentes. Eu estava querendo farrear e beber e comer muitas mulheres. Afinal, eu era recém divorciado. Pelo o que percebi, você tinha planos comigo. Eu que fui o vadio e canalha. Você sempre foi uma boa garota. Desculpe por isso.
Dei um gole fodido no drink, quase terminei com ele. Não estava me sentindo muito bem com aquilo tudo. Conclusões precipitadas das coisas sempre me fodiam, sempre iam me foder. Julgamentos imprecisos, preconceitos imbecis... Tinha que acabar com aquilo, e urgente.
- Tudo bem Carlos, aceito as suas desculpas. E que bom que você me vê com outros olhos. Agora acho que preciso ir embora. Você tem seu texto pra bater e minhas amigas estão me mandando mensagem. Acho que a notícia que estou solteira se espalhou.
- Sim, vá lá, divirta-se! Eu vou me divertir aqui também.
- Ok, obrigado.
Ela estava visivelmente mais cabisbaixa. Acho que ela não iria tentar mais nada comigo, ou talvez a raiva passasse e ela estivesse no meu portão na próxima semana. Isso eu não saberia, e naquela noite eu não tentaria adivinhar. Pra que tentar planejar o amanhã se a gente mal sabe o que está acontecendo no hoje?
Levei ela ao portão. Nos despedimos, dessa vez somente com o beijo no rosto. Voltei pra minha máquina “Ahhhh, bem melhor, bem melhor” eu pensei enquanto beijava o notebook. Os textos daquela noite não ficaram muito bons, mas isso era indiferente. Aquilo valia mais do que qualquer trepada.

Carlos Reis


quarta-feira, 14 de maio de 2014

O preço



“O início de toda loucura acaba sendo imperceptível” Renato havia lido essa frase em algum livro de algum filósofo/sociólogo/antropólogo/cientista político/intelectual chato, desses que só sabem falar de política e debater assuntos, geralmente com uma posição esquerdista, tentando te jogar goela abaixo o que pensam, e quando você simplesmente taca o foda-se e diz “Ok, você está certo”, eles sentem um certo orgulho nisso, como se tivessem dado uma boa foda, ou comprado um carro, ou como eles gostam de fazer, sentarem em poltronas com chapéus extravagantes bebendo vinhos caros e se achando os grandes conhecedores de vinhos importados. “Porque mesmo eu estava lendo essa merda mesmo?” ele não se lembrou, e também agora pouco importava isso. No fim das contas, esse intelectual de merda estava certo. O ser humano oscila mais do que a inflação do país oscilava na época do Collor (também sei pagar de gênio imbecil, e honestamente, eu tenho o total direito de ir me foder por isso), e Renato nessa altura percebeu isso. É curioso, as pessoas fazem tudo no impulso, tanto as coisas boas como as ruins, ele havia feito muitas coisas boas, e agora estava prestes a tomar algumas atitudes que foderiam não somente ele, mas outras pessoas. E ele ia se arrepender disso, ou não, não dá pra saber. Não adianta olhar pra frente, não tem nada ali pra ser olhado. Renato olhava o momento, se ele fosse se arrepender disso, seria apenas o preço pago por arriscar. Seu nome do meio era “inconseqüência”. Sempre foi assim. Sempre seria assim, ele julgava que seria assim, todas as pessoas esperavam isso também. A sobriedade havia tornado ele chato, não para os outros, sim para si mesmo. Ele gostava das pessoas quando estava transtornado, fedendo mais do que um gambá, quando ficava por dias sem tomar banho e usava o seu chinelo surrado e uma bermuda velha. Mas quando ele estava mais calmo, preferia a solidão. Preferia sair sozinho, andar por aí, ler uma ou outra coisa. O problema de fazer as coisas em grupo é que sempre vai ter que existir um meio-termo de tudo o que é feito. Relações humanas não passam de trocas. Você dá um pouco, espera receber um pouco de volta. Quando você dá muito, espera muito em volta. Nem sempre isso acontece. E por isso que a solidão acaba sendo uma alternativa sempre.

“Merda, estou pensando demais!” Renato estressado tomou uma dose de vodka com água, como nos velhos tempos, ele abriu um leve sorriso. Pode sentir seu gosto. Não colocou gelo, isso era o alcoolismo em sua essência, quase como a arte de um pintor. Apesar de ser abstrata, acaba tendo suas razões. Ninguém julga um quadro quando são vários rabiscos coloridos. Isso era arte. Acendendo um cigarro, retornou ao copo. Não sabia se era o certo, se era o errado, mas como foi dito antes, no fim das contas apenas pagamos preços pelas atitudes (corretas ou não). E Renato não estava nem aí pra nada e nem pra ninguém naquela noite solitária e fria de sábado invernal.

Carlos Reis

sábado, 10 de maio de 2014

Escrava de pica



“Tudo bem, eu te espero aqui”
Eu disse, quando Tammie me ligou naquela sexta-feira
Eu estava com fome, havia na frente do trabalho dela um boteco sujo
Adoro botecos sujos
Sentei e pedi um salgado
“Custa 2,70” o cara do balcão disse
“Tudo bem, tudo bem...”
Abri minha garrafa de vinho e comecei a comer um salgado
E do meu lado estava uma mulher
que não era feia, ela era até que bem bonita
bebia cervejas de 600ml
sozinha
Naquele bar tocava forró, ela cantarolava sozinha
Eu somente comia e bebia meu vinho

Ela atendeu o telefone, colocou no viva-voz
(motivo que não entendo)
Prestei atenção na conversa dela
Reparei na aliança na mão direita, de prata, acho que era um namoro sério
E do outro lado da linha o namorado falava com ela
desculpas sem o menor sentido
eu ouvia o som de boteco ao fundo enquanto ele
dizia que estava no trabalho
Entornei mais vinho
Ela argumentava com ele, debatia, mas por fim aceitava
Ele devia estar rindo do outro lado
ele tinha ela na mão
Uma garota até que bem bonita
Mas me parecia uma vadia burra
e como todas as vadias burras
arrumam canalhas traidores e mentirosos
Mas ela não tinha outra opção
Eu não namoraria com ela

Desligou o telefone
entornou mais cerveja
começou a chorar do meu lado
Um choro tímido, sim, bem tímido
Por vezes ela soluçava
“Me dê outra cerveja”
ela disse ao cara do balcão
ela ia se embriagar e tentar esquecer o fato
De que ela era uma escrava de pica
Quando a cerveja chegou, ela virou um copo numa única talagada
e retornou (continuou) a chorar
Olhou pra mim e disse
“Você tem um cigarro?”
“Não” respondi, virando vinho
“Posso tomar seu vinho? Te dou cerveja”
ela disse, com um sorriso bêbado no rosto
e cara de quem queria acabar com o namorado
uma boa traição a ajudaria
“Não, tenho que ir”
Respondi, saindo do lugar

e entornando mais vinho

Carlos Reis

quinta-feira, 8 de maio de 2014

O que não deveria ser publicado #5



Vinho, vinho e mais vinho, e também um pouco de dor nos pés e nos braços. Deus, o nível dos meus rolês estava sempre acima da média, o que quero dizer é que não tenho limites, meus amigos tinham, alguns deles, mas Maycon não. Caralho, foi mais uma noitada daquelas em que sumo do mapa por dois dias. Foi sim divertido, mas por algum motivo, que eu sei qual é, as pessoas se importam comigo. E nesse dia, pós dois dias de rolês, recebi duas ligações e ainda um “esporro” da minha namorada, por ter sumido. Sim, eles se preocuparam, eu não os culpo por isso, mas eu sou assim, eu sumo. A cada dia que passa, sinto menos necessidade do ser humano, de estar com seres humanos, de falar com pessoas, de ver pessoas e me relacionar, e ouvir as pessoas, e ter que falar sobre mim. De fato, sou bem egoísta na maioria das vezes. Sempre falo demais de mim, sempre ouço bem menos do que eu teria que ouvir. Quando uma pessoa não vem falar comigo, eu não falo com ela. Quando uma pessoa não me liga, eu também não ligo pra ela. E nisso se incluem familiares, amigos, namoradas. Não é que eu não me preocupe com eles, mas sei lá. Acho que de fato eu não me preocupo com a maioria dos seres humanos. Se eu ficasse sozinho, sem contato humano por cinco dias, eu não surtaria (e sim, eu já fiz isso, e me senti muito bem). A questão é que quando um ser humano precisa de ajuda, eu estou ali, presente. E sei bem como ser um bom sujeito. Sério. Bizarro esse contraste, eu sei. Mas simplesmente acontece, e oras, eu nunca controlo nada que acontece na minha vida. Estou apenas jogando minha vida pra frente, sem medo, sem pensar demais. Eu me canso fácil demais das pessoas. Ver elas todos os dias, comparecer em eventos sociais, interagir, ter que dar satisfações quanto ao que eu faço da minha vida, sumir e ouvir pessoas desesperadas ao telefone, me incomoda, e PRA CARALHO. Legal da parte deles, mas eu sou assim mesmo, arisco, um verdadeiro bicho do mato. Quando eu morrer, quero que achem meu corpo duas semanas depois, e somente por causa do cheiro.


A primeira ligação que recebi foi do meu irmão, veio com um discurso do tipo “Cara, você está sumido, está tudo bem?” em que eu respondia monossilabicamente “Sim, sim, está tudo bem, e sem novidades” Batemos um papo e ele desligou o telefone. Minha namorada também falou comigo. Eu só tinha visto uns palavrões em CAPS que ela tinha me mandado como mensagem. “Caralho” pensei “Que merda é essa?” Conversamos um pouco, acertamos algumas coisas. Pronto, estava tudo ok. Mais tarde meu pai, com o mesmo papinho do meu irmão “Porra, e aí, e as novidades, devem ter muitas, afinal de contas faz ao menos uma semana que não nos falamos” eu ri de leve, pensando que pra mim era indiferente, a minha semana foi bem tranqüila. Droga. Acho que eu estou errado, não é possível. Todos são o exato oposto de mim, mas eu não consigo ser diferente disso. Merda. Logo logo estarei sozinho, bebendo aos fins de semana sozinho, sem namorada ou amigos, sem familiares me ligando. E então eu me pergunto: será que finalmente eu vou valorizar eles depois que os perder?

Carlos Reis