O rádio
tocava o finalzinho de uma velha canção de jazz. Chet Baker. Eu estava bebendo
whisky e fumando cigarros atrás de cigarros quando recebi a ligação.
-
Alô.
-
Oi, por favor, o senhor Carlos Reis.
-
Pois não, sou eu mesmo.
-
Serei direto. Sua ex-mulher morreu.
-
Nossa! – tive um pequeno baque, de leve – O que houve? E quem fala?
-
Aqui é o soldado Miranda, da Polícia Militar de São Paulo. Ela teve um acidente
de carro. O choque foi tão forte que ela teve traumatismo craniano na hora.
-
Caralho!
-
Sim, estou ligando porque o seu filho estava dentro do carro...
-
Como assim? – eu disse, interrompendo – ele está bem? Como ele está?
-
Calma, ele teve perfurações no pulmão, talvez precise de uma transfusão de
sangue. Mas ele está vivo.
-
PUTA MERDA! Aonde que é o hospital em que vocês vão levar ele?
-
Sim, anote o endereço por favor.
Ele me
passou o endereço, anotei. Tomei um banho, tentei ficar mais sóbrio. Bebi água
e mais água, comi um lanche rápido. Saí de casa e fui rumo ao hospital, que
aliás era bem longe de casa, mas sem problemas.
2.
Cheguei
e fui direto ao balcão de informações, atônito, demonstrando um claro
desespero. O garoto tinha apenas vinte e dois anos. Se eu, alcoólatra, ainda estava
vivo, seria injustiça demais um garoto como ele morrer assim, tão jovem. Nessa
altura da minha vida eu estava com cinqüenta e quatro anos, bebendo pra caralho
ainda, meu fígado não processava muito bem as coisas, mas eu seguia ainda firme
e forte. Angélica com certeza tinha feito alguma grande merda, ela devia estar
bêbada e cheirada, com certeza. Merda. E um moleque bom como o Ygor foi pego
por tabela nas aventuras loucas da minha ex-mulher. Porra, eu nunca fui exemplo
algum, nunca mesmo. Mas jamais colocaria a vida de outro ser humano em risco.
Jamais. Muito menos do meu filho.
A
moça me atendeu com a paciência de sempre dos hospitais públicos.
-
Hm, como se chama a pessoa que você quer ver?
- Ygor
Reis. Sou o pai dele, Carlos Reis.
-
Hm, só um instante. Sente-se ali por favor e aguarde.
-
UMA PORRA QUE EU VOU AGUARDAR SUA VADIA! VOCÊ ACHA QUE EU SOU UM BABACA? – eu gritei,
segurando ela pela gola da camisa (eu estava bêbado e desesperado, isso sempre
me torna belicoso demais).
Um
segurança veio e me puxou, mas aquela demonstração de desespero tornou tudo
mais real pra ela. Passou um tempo e consegui ir até o quarto dele. O garoto
estava inconsciente. Eu chamei “Ygor, Ygor, acorda Ygor” Mas ele não acordava.
Encontrei o médico responsável por ele.
-
Como ele está doutor?
-
Nada bem. A perfuração nos seus pulmões gerou complicações em todos os outros órgãos
vitais. Não sei se vamos conseguir.
-
VOCÊS TEM QUE CONSEGUIR, CARALHO! TÁ ME ENTENDENDO!? – berrei de novo, pegando
ele pela gola da camiseta branca.
O
segurança me puxou de novo. Ele estava mesmo cansado de mim.
- O
senhor tem que se acalmar, senhor Reis. Estamos fazendo o possível! – o médico disse
ofegante após meu ato de violência.
-
Vou tomar um trago, estou de saco cheio de vocês.
Saí
do hospital, passei no primeiro boteco que eu vi. Pedi uma dose de vodka e uma
coca-cola. Montei um drink e comecei a beber. Já estava um pouco mais calmo.
Pedi uma dose de whisky barato, bebi e voltei ao hospital.
-
Estou mais calmo doutor. Como está indo?
- Eu
não sei... Fizemos a transfusão, mas seus órgãos internos estão péssimos.
Aconselho que o senhor vá pra casa.
-
Nem fodendo, vou dormir aqui.
Peguei
minha pequena garrafinha de metal, em que eu carregava vodka. Me ofereceram
calmantes, mas eu recusei. Dei uma boa olhada nele. Uma lágrima escorreu dos
meus olhos. Dei um trago. É mesmo péssimo ver ele entubado, ver ele entre a
vida e a morte. Me doeu por dentro. Merda. Um moleque tão novo, tão
inteligente. Tinha tanto pela frente. Estava parando de beber. Havia conhecido
uma garota, e parecia que essa seria a escolhida pra ele. Ele estava muito bem,
havia acabado de se formar em direito. Hahaha, quem diria, eu que sempre fui
contra as regras com um filho advogado. Nunca forcei isso dele, simplesmente
ele queria ser advogado de defesa, ele tinha algo de querer ajudar as pessoas
que eram acusadas das coisas. Era um grande garoto mesmo. Passei a mão no rosto
dele. Dei um beijo na testa. Minha lágrima caiu exatamente no seu olho direito.
Limpei, com o dedo polegar esquerdo, ainda chorando como uma garotinha perdida.
Eu estava perdido. O sentimento de impotência era enorme. Eu nada podia fazer.
Sentei
no sofá e continuei a beber. Os médicos ficariam encarregados de cuidar dele
pela madrugada.
3.
Acordei
no dia seguinte sem ressaca. Ele não estava mais na cama. Levantei desesperado.
Sai pelos corredores procurando qualquer tipo de informação. Não encontrei. Até
que um médico veio até mim. Sua feição não era das melhores.
-
Ele morreu.
Desabei.
Chorei demais. Meu filho, meu único filho. Não sei explicar o que senti naquela
hora. As palavras jamais poderiam expressar o que eu sentia, nem mesmo no meu
caso, que sempre fui muito bom com elas. Droga. Era um sentimento misto de tristeza,
angústia, fracasso. Tudo isso, tudo isso. Eu não ficava mal pela morte de
Angélica, mas pela de Ygor, com certeza sim. Sentei sozinho, comecei a chorar.
Pessoas vinham me abraçar, mas eu recusava. Precisava ficar sozinho. Assinei as
papeladas. Fui para o velório.
4.
No
velório foi uma outra merda. Amigos dele da faculdade vinham me confortar. Eu
sempre fui um cara muito sozinho, mas ele era muito popular. Em todos os seus
círculos. Eu tinha alguns amigos que me abraçavam também. Luis era um deles.
-
Porra cara, eu achei que eu morreria antes dele. Imagina como dói enterrar o
próprio filho!?
-
Tenho certeza que dói muito Carlos. Mas entenda, ele sempre vai querer te ver
bem. Ele tem uma boa imagem de você, a imagem bêbada e brincalhona que você
sempre teve. Ele sempre te admirou por isso. Eu percebia isso sempre que a
gente saia pra beber com ele. No fim das contas, você acabou sendo um bom pai.
Abracei
Luis de novo. Chorava no seu ombro. Merda. Eu sempre durão mostrava meu lado
emotivo. Muitas pessoas vieram me abraçar. Tentei ser forte, mas não conseguia agüentar
muito tempo. Sempre eu chorava mais e mais. Era coisa demais pra que eu
suportasse.
O
resto do velório e do enterro eu não quero comentar. Quando as coisas são
dolorosas demais, sempre evitamos falar delas. E é isso que eu farei.
5.
Uma
semana após o ocorrido, fui ao quarto dele, ver o que eu faria com os móveis e
com as roupas. Provavelmente eu iria doar. Não precisava de dinheiro. Bebia
barato e ganhava uma grana suave como escritor. Certamente eu sabia como
economizar dinheiro. Vasculhei algumas coisas. Senti o cheiro das roupas dele.
Abri algumas gavetas. Nada demais.
Achei
um pequeno caderno preto com alguns textos dentro. Com certeza ele havia
herdado o dom do pai para a escrita. Tinham alguns bons contos lá dentro, mas
ele sempre foi tímido, nunca tinha publicado nada disso, sequer me mostrado.
Até que me deparei com um texto, não tão bem trabalhado. Pela letra, ele
escreveu quando estava bêbado, isso o deixou mais sincero. Se chamava “Carta ao
meu pai”
“Pai,
Não sei como dizer esse tipo de coisa.
Você sempre foi um pai de merda. Lembro quando você chegava bêbado em casa após
as noitadas que você fazia. Sempre muito irritado, violento. Quebrando coisas,
copos, cadeiras, gritando com a minha mãe. Ou ainda, quando você passava dias e
mais dias na rua, sem voltar pra casa. Crescer com essa realidade me fodeu. Eu
poderia ter virado um maldito fumador de crack. Mas não, eu sempre quis ser o
seu oposto. Cada grito seu, cada soco que você dava na minha mãe, cada vez que
você me tratava com indiferença, isso sempre me alimentou ainda mais pra que eu
fosse diferente. E fui. Por muito tempo, inclusive não precisei de você, inclusive
aprendi a me resolver sozinho. Sim, eu sempre me virei sozinho, porque você
sempre foi uma merda de pai. Mas o que eu quero dizer é que nos últimos quatro
anos você tem tentado melhorar. Você está se esforçando, sei que quando você me
falava pra parar de beber é porque você queria o meu bem, não para encher meu
saco, não para ser hipócrita. Você olhava pra si mesmo e dizia que não queria
que seu filho se tornasse como você. Eu caí nesse lance por acidente, por fuga
talvez. Você esteve sempre do meu lado nesses últimos quatro anos. Sei que você
tem seus problemas pai, sei disso, e fico feliz que você está deixando eles de
lado pra tentar me ajudar. E por isso estou sim tentando parar com a bebida.
Lembra quando a gente saiu pra beber whisky naquele dia em que eu estava
prestes a foder com aquela garota da faculdade, a mais bonita da minha sala? Eu
lembro, você me ajudou demais com as mulheres, tanto que aquela vadia ficou no
meu pé por meses hahahaha, e se não fosse você, talvez eu fizesse algo errado.
Você entendia de mulheres. E de textos. E se está lendo isso agora, algo
aconteceu comigo. Sei que meus textos jamais chegarão aos pés dos seus. Sei
disso. Mas sei lá, eu simplesmente quero desabafar. Você ganha a vida com isso,
eu não quero. Quero ser um advogado de sucesso. Quero fazer o que você sempre
fez: ajudar as pessoas que são julgadas pelas regras da sociedade. Sim, você
sempre as ajudou, como naquela vez em que fui parar na delegacia porque um
brother meu estava com o carro cheio de cocaína, e você estava lá, bêbado como
sempre, mas ainda assim presente. E você ajudou não só a mim, mas a eles
também. Você tem um bom coração pai, e se por acaso você foi um babaca durante
a minha infância e minha adolescência, você devia ter seus motivos. Sua vida
também não foi fácil. A mamãe é mesmo muito maluca. Ela mistura pílulas com
cocaína e vodka. Eu acho que ela vai morrer logo logo. Ainda assim a amo. E
pai, agora que percebi o que você passou, e agora que sinto o que realmente
aconteceu com você, e percebo que você sempre me amou, mesmo do seu jeito
complicado, sinto que posso sim mudar meu ponto de vista. Lembra das milhões de
vezes que eu disse ‘eu te odeio?’ Sim, foram milhões. Mas agora eu posso dizer,
sem medo, aquilo que eu sempre quis falar: ‘eu te amo pai’ Espero que isso
apague todo o passado.
Ygor Reis, seu filho”
Desabei.
Lágrimas escorreram sobre meu rosto. Ao menos ele morreu sentindo aquilo que eu
sempre quis que ele sentisse. Minha dor foi um pouco amenizada. Também te amo
filho.
Carlos Reis
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