quinta-feira, 15 de maio de 2014

A vadia e o pedido de desculpas



Eu estava sentado na varanda do meu apartamento, na verdade era um kitnet, na verdade era uma suíte, mas tinha uma varanda bacana, ali na Rua Tuiutí, região leste de São Paulo. Pagava razoavelmente caro, mas bebia barato, a suíte era boa. Simples. Mas tinha uma cama de solteiro, um frigobar, um forno elétrico, uma escrivaninha em que eu batia meus textos no velho notebook, ainda uma TV a cabo, de LCD. Além disso, o valor era fixo, com todas as contas inclusas. A varanda dava direto pra rua, eu via as pessoas andando apressadas, umas indo em direção ao metrô pra voltarem pra casa, outras iam ao shopping que havia ali do lado. Eu bebia rum com coca e fumava cigarros paraguaios. Era por volta de umas 19h de uma sexta-feira. Havia trabalhado o dia todo, enfim havia arrumado um emprego que me providenciasse uma boa grana, apesar da correria eu gostava dele. Naquele sábado eu estaria de folga (eu trabalhava sábado sim e sábado não), e a idéia era me embebedar um pouco e depois tentar bater um conto. Eu tinha recebido meu salário, mas estava evitando sair de casa, afinal, era o primeiro fim de semana depois do quinto dia útil, tudo estaria um completo inferno. Até o puteiro do fim da rua estava com fila (mesmo sendo malditas 19h!), imaginem os bares, imaginem o shopping! “Por Deus, nem fodendo que boto os pés pra fora daqui, nem fodendo...” eu pensei sorrindo de leve, feliz por estar ali, no meu canto, meu sossego, sem barulhos, nem pessoas. Dei mais um gole no meu drink, outra tragada no cigarro e disse amém.
Levantei da minha cadeira, me espreguicei e decidi que já estava bêbado o bastante pra começar a escrever. Qualquer coisa serviria. A escrita não é uma necessidade, é um hobby, é algo pra gastar o tempo. A diferença da escrita pra Ioga, é que a escrita te enlouquece, a Ioga não. Abri meus olhos após a espreguiçada, dei mais uma olhada na rua e vi uma garota apressada atravessando a rua. “Merda...” pensei. Era Aline, uma vadia que fiquei por um tempo. Ela era bacana, ficamos um mês, mas ela era muito vadia, não gosto de namorar vadias, por isso chutei ela após o primeiro mês. Mas por algum motivo que eu jamais vou entender, ela ainda gostava de mim, e me perseguia pra conversar. Nunca nego conversa com as pessoas, eu simplesmente não procuro. A questão é que se alguém quiser conversar, por mim tudo bem. E com ela eu fazia isso. Mas percebi que ela estava tentando me reconquistar, ao menos é o que eu achava. Enfim, voltei pro quarto, montei mais uma dose e tomei bem rápido. Após meu último gole ouço as batidas na porta. Era a dona Vera, que cuidava da casa.
- Carlos! Carlos! Tem visita!
- Fala que eu não estou dona Vera!
- Sinto muito Carlos, eu vi você chegando a menos de uma hora... Já disse que você está aqui!
Coloquei uma camiseta (nada como ficar sem camisa na varanda quando está calor) e abri a porta.
- Porra dona Vera...
- Ela é da polícia? – me perguntou com um olhar penetrante.
- Não não... pior, ex- ficante/namorada/esposa ou sei lá o que ela acha que tem comigo. Eu julgo amizade, mas não sei o que passa na cabecinha doente e vadia dela.
- Vixi... Ferrou! – ela disse dando risada com a mão direita na boca – seria melhor a polícia.
- Com certeza dona Vera, com certeza – eu disse já colocando o chinelo.
- Você também tem muito rolo com mulher Carlos. Tem que dar uma sossegada! – ela disse, me acompanhando pelo corredor em que havia outros quartos.
- Meu problema com mulheres não é o número delas. Uma mulher louca pode te foder mais do que dez normais...
Retruquei dona Vera enquanto ela já se sentava no sofá da sala e eu descia as escadas do prédio pra buscar Aline na porta. “Merda, eu só queria escrever!” pensei balançando a cabeça negativamente.

2.

Abri o portão, dei um beijo no rosto dela, ela me puxou e me deu um abraço contra a minha vontade. Retribui um pouco, depois me desvencilhei dela de forma sutil.
- Como você está Carlos?
- Bem, e você?
- Também... Na verdade eu queria conversar com você, isso se você não estiver ocupado.
- Bom Aline, me desculpe, mas como você pode ver eu estou um pouco bêbado e planejava escrever alguma coisa.
- Tem alguém aí com você?
- Claro que não, você sabe que escrevo sempre sozinho.
- Nesse caso eu quero falar com você. É mesmo muito importante, vai ser rapidinho, logo logo você vai poder escrever, eu juro. Por favor, vai...
- Tudo bem, entra ai.
- Valeu! – ela disse e me abraçou de novo.
Subimos, eu na frente e ela me acompanhando. Passamos pela sala, apresentei a ela pra dona Vera como “amiga” Aline. Amiga é a melhor palavra. Na dúvida eu estava com uma amiga no meu quarto. Sim, eu transei com a Fulana, uma amiga minha. Rótulos são complicados pois no geral tem prazo de validade. Amizade pode durar por anos, ou até mesmo a vida toda. Além disso, você não precisa ficar explicando quando você apresenta a garota pra outra pessoa. Como quando fui casado e dizia “essa é minha esposa”, me bombardeavam com perguntas que eu estava cansado de responder. Mas eu era mais jovem e mais estúpido do que sou hoje, era diferente. Enfim, fomos pro quarto. Ela sentou na cama, peguei uma cerveja pra ela e pra mim mantive a dose de rum com coca. Sentei na cadeira da escrivaninha.
- E aí, desembuça – eu disse dando uma talagada.
- Ai Carlos, não sei se você lembra do Marcos... O carinha que eu estava ficando.
- Lembro sim – eu disse pensando “OHHHHH MEU DEUS, LÁ VAMOS NÓS!”
- Então, a gente terminou. E pior que eu gostava dele, ele era um bom cara.
- Aline, é uma pena que você tenha terminado, mas você não tem amigas mulheres pra ficar falando disso? Sei lá, se reúnam pra falar mal dele. Eu sou homem, mal conhecia o sujeito. Não vou servir pra esse tipo de desabafo. Aliás, nenhum homem hétero serve pra isso.
- Eu sei Carlos, mas você sempre foi um sujeito tão compreensivo. Sempre gostei de falar com você, desde quando ficamos. Tanto que mesmo você me chutando aceitei manter a amizade.
- “Aceitei” seria se eu tivesse pedido – eu disse sarcasticamente, fazendo o sinal de aspas com os dedos médios e indicadores de ambas as mãos.
- Nossa você continua sempre estúpido... – ela disse virando a cerveja – Não cansa disso?
- Não. A verdade é estúpida. A mentira é gentil. Entenda como quiser cara – dei mais um gole no meu drink.
- Enfim, mesmo você sendo estúpido, você é um cara bacana. Precisava te ver. A gente podia sair hoje, o que você acha? – ela disse passando a mão no cabelo, ajeitando de leve.
- Eu tenho meu texto pra bater Aline...
- Bate ele na segunda! Você precisa se divertir, afinal a gente trabalha a semana inteira pra isso – ela riu, levantou a cerveja e deu um gole.
- Primeiro que eu não tenho dia pra escrever, eu simplesmente escrevo quando bem entendo. Já aconteceu de eu acordar no meio da noite pra ir ao banheiro e ter idéia de texto. Não voltei a dormir até terminar ele – dei uma golada, matando o drink – e segundo que acho que esse tipo de coisa se faz com as suas amigas mulheres. Se uma mulher me chuta, chamo meus amigos homens pra beber.
- Vai dizer que você não fica meio assim que eu saia pra beber com as meninas? Pode ser que eu arrume um cara... Não hesitaria de pegar ele se fosse bonito – ela disse rindo, tomando mais cerveja.
Levantei, montei mais um drink, peguei um cigarro. Ofereci pra ela, ela recusou. Sentei na cadeira da varanda, acendi um cigarro e chamei ela pra me acompanhar. Ela ficou de pé olhando a calçada.
- Escuta aqui Aline – nisso ela olhou pra mim – tivemos o nosso momento, foi bem bacana, você é uma garota muito bonita, pode arrumar zilhões de caras por aí. Sério mesmo, eu não tenho ciúmes do próximo cara, assim como não tive do Marcos – finalizei com uma tragada no cigarro e uma golada no drink.
Ela me olhou por um tempo. Tomou mais cerveja. Me olhou de novo, como se dissesse com os olhos “eu tenho ciúmes de você, seu estúpido”, mas isso era infundado, eu mal trepava. Eu bebia, escrevia, curtia as facilidades de morar perto do centro de São Paulo, trabalhava e, quando saia, eram coisas leves, com os amigos, algo como uma Pizza Hut, um rodízio de comida japonesa. Porra, ela tinha ciúmes era do meu notebook.
- Carlos, seguinte: Não me preocupa se você tem ciúmes ou não de mim – “mentiiiiiiiraaaaaa...” pensei – porque eu não tenho ciúmes de você – “mentiiiiiiiraaaaaa...” pensei de novo – minha questão é que acho que nosso ciclo não se encerrou. Acho que ainda podemos acrescentar muito um ao outro.
Nisso até esqueci o fato de que ela era uma vadia. Ela disse aquilo com uma sinceridade tremenda. E me pareceu bem mudada, muito diferente daquela mulher pós-divórcio que eu havia ficado anos atrás. Ou melhor, eu tinha mudado, e minha mudança acabou mudando ela. Bizarro pensar assim, mas julgo como possível. Mesmo assim sei lá. Faltava algo nela. Sempre que eu penso em namoro, eu preciso de alguns pré-requisitos e um negócio que se chama “algo”. Eu nomeei assim. Já me disseram que isso é “química”, “paixão” ou ainda “amor”. O que é eu não sei, o que sei é que isso é muito raro, e ela, naquele momento não tinha esse “além”. Não queria que ela ficasse mal. Mas porra, eu tinha um texto pra bater, meu texto era minha prioridade.

3.

- Preciso de mais um drink – eu disse, deixando meu cigarro no cinzeiro – quer outra breja?
- Sim, quero sim, valeu.
Montei mais um drink. Olhava pra parede, olhava pra varanda, via ela e pensava em como tirar aquela mulher da minha casa. Eu sempre fui rude demais nesses casos, mas eu tentaria amaciar com ela.
Peguei a cerveja e o drink, voltei pra varanda. Entreguei pra ela a cerveja, dei uma golada no drink, tragada no cigarro e disse.
- Aline, confesso pra você que na época que ficamos eu tinha uma visão diferente sua. Pra ser bem honesto, eu ainda tinha essa visão até você entrar aqui hoje.
- Que visão? – ela interrompeu.
- Deixa pra lá... – eu disse pensando “OLHA A MERDA QUE EU FIZ NESSA PORRA!”
- Não não Carlos, eu quero saber, vai fala.
- Ok, eu achava que você era uma... vadia.
Ela me olhou enfurecida. Na hora imaginei aquela garrafinha de cerveja voando na minha testa. Ou um chute direto nas bolas. No melhor dos casos, um cuspe no rosto. Mas não, ela somente ficou enfurecida.
- Porra Carlos, você é um completo imbecil! Seu babaca, alcoólatra de merda!
- Isso me xinga, me xinga a vontade e respira fundo vai – eu disse, gesticulando os braços como um movimento de respiração e fazendo o processo na esperança de que ela fizesse também.
- ALCOOLATRA! VIADO! CUZÃO! FILHO DA PUTA! PAU PEQUENO! FRACASSADO!
- Isso, isso, pode falar – eu disse, agora já bebendo meu drink.
- Você está fodido, vou espalhar pra todo mundo que você tem o pau pequeno! E... e... e... e que é ruim de cama também!
- Tudo bem Aline, tudo bem. Posso continuar agora? Tá mais calma? Bebe a sua cerveja vai, bebe – eu virei de leve a garrafa na boca dela, pegando por baixo.
- Tudo bem, seu merda! Desembuça!
- Ok, obrigado. Enfim, eu achava isso que você acabou de ouvir, mas com essa conversa eu senti que quando ficamos estávamos em momentos diferentes. Eu estava querendo farrear e beber e comer muitas mulheres. Afinal, eu era recém divorciado. Pelo o que percebi, você tinha planos comigo. Eu que fui o vadio e canalha. Você sempre foi uma boa garota. Desculpe por isso.
Dei um gole fodido no drink, quase terminei com ele. Não estava me sentindo muito bem com aquilo tudo. Conclusões precipitadas das coisas sempre me fodiam, sempre iam me foder. Julgamentos imprecisos, preconceitos imbecis... Tinha que acabar com aquilo, e urgente.
- Tudo bem Carlos, aceito as suas desculpas. E que bom que você me vê com outros olhos. Agora acho que preciso ir embora. Você tem seu texto pra bater e minhas amigas estão me mandando mensagem. Acho que a notícia que estou solteira se espalhou.
- Sim, vá lá, divirta-se! Eu vou me divertir aqui também.
- Ok, obrigado.
Ela estava visivelmente mais cabisbaixa. Acho que ela não iria tentar mais nada comigo, ou talvez a raiva passasse e ela estivesse no meu portão na próxima semana. Isso eu não saberia, e naquela noite eu não tentaria adivinhar. Pra que tentar planejar o amanhã se a gente mal sabe o que está acontecendo no hoje?
Levei ela ao portão. Nos despedimos, dessa vez somente com o beijo no rosto. Voltei pra minha máquina “Ahhhh, bem melhor, bem melhor” eu pensei enquanto beijava o notebook. Os textos daquela noite não ficaram muito bons, mas isso era indiferente. Aquilo valia mais do que qualquer trepada.

Carlos Reis


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