sexta-feira, 16 de maio de 2014

A ponte



Sentou naquela borda da ponte naquela madrugada chuvosa e fria e solitária na cidade de São Paulo
Olhou para baixo e viu o asfalto de uma avenida muito movimentada, e mesmo pelo fato de ser madrugada, ainda havia carros que voavam baixo por ali
Na sua mão direita uma garrafa de vodka barata
Na sua mão esquerda um cigarro paraguaio
Na sua mente um turbilhão de idéias que eram péssimas em geral, sendo que boas mesmo eram quase nulas
Não sabia se voltava ou se jogava, se enfrentava a vida ou se fugia dela, se aceitava as imposições ou se revoltava contra elas
A dúvida era cruel quanto a isso, seu cigarro não era mais tragado por causa da chuva, mesmo assim ele gostava de segurá-lo, pelo simples prazer de segurar um cigarro
Golava a vodka, golava a vodka, golava a vodka... E pensava, e foi isso que ele fez durante a vida toda, e por isso perdeu muita coisa
Carros importados com pessoas felizes e bonitas e bem vestidas e bem-sucedidas e mulheres loiras e magras com os dentes brancos e colares nos pescoços
E homens fortes e com gel nos cabelos, barbas rentes e muito bem feitas, olhos claros e donos de estabelecimentos e prontos pra criarem filhos para o sucesso
Filhos de carros zero quilômetro e de cursinhos particulares e boas faculdades, fumando boa maconha, cheirando boa cocaína e curtindo a juventude até os vinte e cinco anos
Festas de faculdades, transas irresponsáveis. Facilidade
Ele não teve nada disso, somente a vodka, a boa e velha vodka barata, sempre ela, sempre ela. E agora a borda da ponte
“Não vou me entregar tão fácil assim, não vou mesmo” ele disse determinado a continuar incomodando a visão de tudo aquilo que lhe incomodava a visão
Tentou voltar os pés pra dentro da ponte, mesmo com a chuva e ainda segurando a garrafa de vodka e o cigarro apagado
Escorregou nessa tentativa falha, caiu da borda da ponte em direção à avenida movimentada, sem tempo de pensar muita coisa, sem tempo de gritar por socorro
Como uma cena de filme, caiu numa fração de segundo, não pensando em mais nada além de fechar os olhos, sorrir sem mostrar os dentes podres e abraçando a garrafa de vodka
(sem largar o cigarro apagado)
Caiu em cima de um carro importado, morreu na hora, mas morreu feliz

Ele nunca vai saber disso, mas ao menos ele conseguiu incomodar um pouco aqueles que a ele tanto incomodavam

Carlos Reis

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