sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O bêbado e o psicólogo



Um consultório. São oito horas da noite. O psicólogo aguarda a entrada do seu paciente.

- Boa noite. Sente-se, por favor.

O bêbado observa a tudo. Ao mesmo tempo que demonstra desconfiança, transmite uma certa passividade.

- Isto, sente-se.

O bêbado finalmente se acalma e senta.

- Por favor. Comece de onde quiser começar.
- Hm, ok - ele olha atentamente para o psicólogo - Tenho problemas com alcool.
- Certo, compreendo. Mas por favor, se aprofunde mais nisso. Problemas com alcool não surgem ao acaso. Preciso saber mais de você.
- Beleza doutor. Pegue os mais diversos traumas. Tive todos. Desmoronamento familiar, pais usuários, medos, choros reprimidos. Tive tudo que fode uma pessoa.
- E deixa eu adivinhar: o alcool é a fuga para tudo isso.
- Alcool não é só fuga. É um estilo de vida - disse o bêbado com um brilho nos olhos - Um costume. Depois que você começa, você não para. Por nada! Mesmo que os traumas acabem, o alcool continuará.
- Compreendo. Existe da sua parte um entendimento dos malefícios do alcool?
- Sim, existe sim.
- Correto. E me fale como o alcool se tornou um costume. Como ele se tornou um estilo de vida.
- Assumo que no início era uma fuga. Porém, chega uma hora em que mesmo quando estamos bem, nos embriagamos de uma forma violenta, como se tivessemos um problema.
- O alcool como diversão entre amigos ainda existe?

O bêbado dá uma grande respirada, olha pro teto. Pensa e responde.

- Na verdade não. Honestamente, bebo sim entre amigos. Mas nunca para me divertir. Sempre pensando em mim, somente em mim, na minha maldita tristeza.
- Mas e o propósito - o psicólogo pergunta com certa indignação - Cadê o propósito disso tudo? Me diga.
- Aí é que está o problema. O propósito é não ter propósito. A verdade é que é mentira.

O psicólogo parece confuso nesse momento. Coça a cabeça, descruza as pernas. Pensa e afirma cautelosamente.

- Eu, como psicólogo cartesiano que sou, não compreendo essas suas divagações abstratas. Preciso de algo mais palpável para compreender isso tudo, ver a questão clara na sua totalidade.
- Você doutor, como entendedor do ser humano, deve aceitar abstrações, somos seres abstratos!
- Compreendo você. E tenho de concordar que o ser humano realmente não é algo matemático.

Os dois trocam olhares de apreço recíproco. Parece que estão se entendendo muito bem.

- Portanto, - disse o bêbado - voltemos... Aliás, comecemos a citar Nietzsche.
- Meu Deus, péssima ideia!
- Medo dos fatos, caro psicólogo?
- Não tenho medo, só apatia.
- É isso que exige o seu trabalho, não é mesmo? Apatia para lidar com essa merda toda?
- Enfim, já que insiste, prossiga. Você citava Nietzsche.
- Exato doutor. Nietzsche costumava dizer em alguns de seus livros, principalmente naqueles que analisavam a moral, que a moral humana é abstrata. O vício portanto, pode se assemelhar à virtude, dependendo de como for exposta.
- Peraí, peraí - disse o psicólogo espantado - Você quer dizer com esse papo de Nietzsche que o alcool é uma virtude? Eu devo ter entendido errado!
- Eu digo que ele me torna um homem vicioso perante a sociedade, porém um homem virtuoso para mim mesmo.
- Afirmas que o alcool faz você se sentir melhor consigo mesmo e pior com o resto da sociedade?
- Exatamente... Na verdade, o alcool me torna menos insatisfeito comigo mesmo por algumas horas... geralmente até a hora que eu desmaio.
- Portanto somente durante a embriaguez?
- Exato doutor, isso que quero dizer.

Um momento de silêncio entre os dois. O psicólogo observa o bêbado de cima a baixo, parecendo esperar uma reação. De repente, o bêbado se levanta.

- Acho que vou embora.
- Tem medo de se conhecer?
- Isso eu já fiz sem precisar de médicos como você.
- Você tem certeza disso? Acha que se conhece? Que pode melhorar?
- A melhora é subjetiva doutor... Mas paremos com esta conversa enfadonha. Tenho mesmo que ir.
- Você é quem sabe...

O bêbado se vira, anda em direção a porta. Para. Fica parado ali, com a mão na maçaneta. Olha pra trás com o olhar cabisbaixo. O sentimento de culpa corrói ele nesse momento. O arrependimento, a tristeza pelo seu próprio estado. Olha para o psicólogo e pergunta, com uma voz baixa.

- Você... Você acha que pode me ajudar... A parar de beber e talz?
- Eu só lhe escuto e lhe aconselho. Preciso da sua ajuda nisso, porque apesar de eu estudar muito o ser humano, você é quem sabe melhor o que está passando.
- Compreendo... Acho que vou ficar mais um pouco então.
- Ótimo! Sente-se e prossiga. De onde quer continuar agora?
- Bom, voltemos a Nietzsche!

O psicólogo parece desconfortável. O bêbado retorna e senta. O psicólogo, coçando a barba, fixa o olhar nos olhos do bêbado e questiona.

- Você quer manter a sessão só para falar de filosofia romântica alemã?
- Na verdade sim. Ou não... Não sei. - o bêbado divaga - Só afirmo que são raros os homens inteligentes como você ou eu...
- Você se considera inteligente, mesmo alcoolatra, mesmo destruindo sua vida?
- Considero sim, e lhe explico. Nada se destrói por completo. Toda destruição é na verdade uma mudança. O alc...
- Isso quando se destrói para construir, o que não vejo como sendo seu caso.
- Não me interrompe porra! - grita o bêbado - Deixa eu terminar caralho!
- Desculpe, prossiga.
- Obrigado. Onde estava... Ah sim, me lembrei, falava sobre mudança. O alcool me destrói, hei de concordar. Mas graças a ele, consigo construir pensamentos que ajudam as pessoas que me cercam e, porque não, me ajudam também!
- E por isso você é inteligente?
- Exato. Porque ao meu ver, por pensar coisas novas, sou inteligente.
- É um pensamento coerente, porém ingênuo.
- Porque ingênuo? - pergunta o bêbado visivelmente curioso.
- É ingenuidade da sua parte pensar que ajuda as pessoas por se destruir. A sua destruição não ajuda as pessoas.
- A minha destruição é indiferente pra elas, desde que eu às ajude!
- O senhor está errado ao pensar desta forma - disse o psicólogo de forma desanimada - pense que sempre que você se destrói, acaba destruindo alguém. Digo, as pessoas que por você tem afeto.
- Isso é bobagem! O afeto é um nome bonito para interesse.
- Obviamente eu sabia que você pensaria dessa forma. Essa amargura que você carrega não passa de uma proteção. Acho que antes de qualquer tentativa para fazer você largar o alcool, preciso construir um pouco de amor próprio e confiança no próximo dentro de você.
- Hahahahahaha, espere isso sentado. Com o meu ceticismo, que já está muito enraizado, eu diria que é impossível que o senhor alcance esse objetivo!
- Mas se você não quiser acabar com esse ceticismo, impossibilita que meu trabalho seja feito. E assim não posso te ajudar.
- Me desculpe, mas no momento não me sinto a vontade para tal. Os traumas que me tornaram como sou, infelizmente não consigo esquecer...
- Isto é clichê, mas preciso te falar: você precisa superar isso!
- Hahahahahaha é simples dizer isso né?! Principalmente para o senhor que nunca passou pelas coisas que eu passei, as coisas que me destruiram.
- Sei como é difícil esquecer o passado. Mas assim como você, todos tem situações traumáticas, alguns mais e outros menos. Mas superam isso e seguem com uma perspectiva otimista.
- É aí que está doutor! Esse é o ponto. As pessoas não superam as coisas. Elas simplesmente fecham os olhos e fingem que nada aconteceu.
- Mas este é o conceito de superar: ir adiante.
- Enfim, fodam-se os conceitos, não sou linguísta... O que quero dizer é que eu não consigo fechar os olhos e fingir que as coisas não aconteceram. Na verdade, eu super valorizo todas as situações traumáticas.
- E aí está o erro! - disse o psicólogo indignado - Essa super valorização não está lhe fazendo bem.
- Não use a palavra erro, por favor doutor. Os conceitos morais são abstratos e o senhor bem sabe disso. Não queira julgar o que é o MEU certo e o MEU errado!
- Ok, você tem razão. - disse o psicólogo tentando evitar um confronto - Desculpe.

O paciente olha para o relógio. Fica quieto por alguns instantes. Olhando para baixo, coça a cabeça freneticamente e mexe a perna, transmitindo desconforto.

- Acabou a sessão doutor. Temos que encerrar.
- Espero que você só precise de um tempo... Te vejo na próxima semana?
- Isso vai depender de uma coisa: que eu queira realmente ser melhor.
- Disto não posso cuidar, mas espero que sim.
- Veremos doutor, veremos.

O paciente se levanta e vai embora. Saindo do consultório ele apaga a luz. O psicólogo de início pensa em acender. Mas pensa que é mais confortável ficar em seu consultório no escuro.

Zaratustra

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