quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Desigualdade, doses de cachaça e a repreensão



Eu voltava a passos apressados enquanto ouvia Nirvana no meu celular, passando por estradas feias, com pessoas feias e desgraçadas, e sem os dentes (os frontais), e crianças nas ruas brincando com a terra, e as mães nos portões alheios fofocando sobre as vidas alheias. Carros pomposos e luxuosos passavam por ali, também, assim como eu, apressados, seus vidros eram escuros, mas volta e meia eu via alguém com os vidros abertos, eram madames em possantes de banco de couro, dados pelos maridos, empresários ou investidores de sucesso, ou médicos, com crianças de uns sete ou oito anos no banco de trás, crianças gordas, brancas e bem penteadas, e bem diferentes daquelas que brincavam na terra, que eram em sua maioria negras e com a cabeça raspada, cogitei a hipótese de que as madames levavam seus filhos pra casa depois de os terem pego nas escolas particulares, que eram muitas no caminho daquelas estradas feias, escolas com nomes pomposos, como "Maximiliano" ou "Arceu Crispiano" e outras coisas pomposas. De pomposidade eu não entendo porra nenhuma, tanto que eu voltava a pé e ouvia Nirvana, e não me importava de pisar nas estradas feias, ou de ver as pessoas feias e as crianças largadas nas ruas com seus brinquedos velhos... Mas sei lá "o mundo é mesmo uma merda", pensei, mas ainda mantive os passos apressados.

Passava em frente a um boteco, daqueles bem pequenos mesmo, daqueles que são feitos na garagem da casa do dono. Haviam alguns alcoólatras ali, eles bebiam cervejas baratas e jogavam dominó, sentados ao redor de uma mesa de metal que estava escrito "Antartica" em cima, com um logo de um pinguim. No balcão do lugar, havia um senhorzinho bem velho, meio corcunda já, usava roupas que não passavam de meros trapos, mas ainda assim ria (com nenhum dente na boca), enquanto tomava uma dose de cachaça. Decidi parar ali, me pareceu ser um local bem agradável. Fui em direção ao balcão e lancei:

- Me dá uma dose de cachaça!
- 51 ou Velho Barreiro? - um senhor com uma toalha no ombro me perguntou.
- Do Velho, é claro!

Ele serviu minha dose, eu via o líquido ir enchendo o copo e lambia os beiços, ele me olhava de soslaio, como se me reprimisse, e o velhinho corcunda só dava risada e passava a mão no rosto. O copo ficou cheio até a boca. Peguei sem pestanejar, virei tudo numa golada só (mentira, foram em duas, mas uma seguida da outra). Bati o copo na mesa.

- Outra!

Ele serviu de novo meu copo, a cena se repetiu, com exceção do velho corcunda que não ria mais, ele me olhava com seriedade e bebericava seu drink de leve, como se fosse veneno. Novamente o copo cheio, novamente em duas talagadas mandei tudo pra dentro. Dessa vez deixei escapar um pouco, por isso passei as costas da mão esquerda na boca.

- Outra!
- Tem certeza filho? - ele me disse, e dessa vez me olhou bem nos olhos.
- Tenho sim senhor! Outra!

Ele serviu mais uma dose, dessa vez ele parou de encher antes do copo chegar no talo. Lancei um olhar de repreensão que foi fulminante. Ele continuou a despejar líquido até chegar na borda. Peguei e virei em duas talagadas. Bati o copo na mesa.

- Quanto eu lhe devo?
- Três reais.

Coloquei uma nota de cinco em cima do balcão e saí fora, pronto, eu havia feito minha boa ação do dia, aquele cara deveria ter uns 8 filhos pra sustentar. Saí do local meio tonto, mas ainda assim bem, e o velho corcunda voltou a rir e a beber pesado quando eu pisei na calçada. Aquele lance de trabalhar 10h por dia estava me consumindo, mas eu não dava a mínima. Era isso ou a morte.

Zaratustra

Nenhum comentário:

Postar um comentário