sábado, 19 de abril de 2014

Sonhos no lixo



O reflexo de tudo aquilo que eu havia exagerado durante a juventude agora pesava. Eu estava com exatos cinqüenta e cinco anos. Meu fígado (por algum milagre), ainda não havia parado. Acho que fui o escolhido pra beber por anos e anos. E por isso eu bebia todos os dias. Além disso, isso me entretinha. Acordei naquela bela manhã de sábado, fui ao banheiro e vomitei. Isso era o de praxe, mas naquele dia eu me sentia mais desconfortável do que o normal. Berrava, aliás, urrava, aliás, gritava (ou a mistura disso tudo), enquanto expelia aquele líquido pra fora do meu corpo, ofegante. Com o rosto apoiado na privada por alguns instantes, retomei o fôlego.  Me levantei, limpei a boca e voltei pra cama. Olhei no relógio, ele marcava 10h.
Estava namorando uma garota mais nova do que eu. Ela devia ter uns 28 anos, curtia meus textos, a gente se conheceu num festival de literatura marginal, em que eu li uns poemas, assim como mais uns outros vinte caras. Mas ela gostou dos meus, começou a ler todo o meu trabalho, me adicionou no FaceBook, começamos a nos ver e trepar e o namoro acabou sendo inevitável. Vamos chamar ela de Samantha. Tinha um belo corpo, estava em forma, era fulgaz, metia como uma leoa, eu parecia mais um grande rinoceronte, desengonçado. Dizem que o estado do seu fígado influencia em toda a sua saúde, que ele é um dos órgãos vitais. Bom, meu pau ainda subia, mas as trepadas não eram como há trinta anos. Ela deve ter acordado com meus gritos.
- Você tá bem amor? – ela disse, me olhando e segurando meu ombro.
- Estou sim. Acho que bebi demais ontem, aí que hoje estou fodido.
- Sim, já te enchi o saco com esse lance de bebida, mas tudo bem... Hey, está um belo dia lá fora, vamos sair. Tem uma pracinha aqui do lado.
- Samy... Temos mesmo?
- Sim Carlos, temos sim. Hoje é sábado, você está de folga, eu também e o dia está lindo – ela disse, abrindo as cortinas.
Aquela luz me pegou como um raio. Acho que sempre fui mais noturno do que matutino.
- Escritores não acordam antes do meio dia – eu retruquei, acendendo um cigarro.
- Mas você não é escritor. Você trabalha com contabilidade, de segunda a sexta.
- Bom, eu escrevo, isso me faz um escritor. Se eu ganho dinheiro com isso? Às vezes. Mas de qualquer forma, eu trabalho de madrugada, preenchendo papelada.
- Tudo bem “escritor”, mas vamos sim. Vai tomar um banho – ela pegou um cigarro e acendeu.
- Caralhos, tudo bem Samy, tudo bem...
Apaguei meu cigarro, peguei uma bermuda e uma camiseta, além de uma cueca limpa. Entrei no chuveiro, tudo o que eu pensava era “E pensar que estou há quase dois anos com essa mulher. Devo ter um grande problema, só pode ser isso...” Senti a água escorrer, me sentia bem e feliz. A dor do gorfo (que parecia uma dor de parto), já era passado. Saí, me enxuguei e me vesti. Enquanto ela tomava banho, comi um pão com manteiga. Eu, quando mais novo, sonhava em chegar aos cinqüenta e cinco vivendo somente de escrita. Mas lá estava eu, batendo textos, ganhando misérias com isso e trabalhando de madrugada preenchendo formulários pra uma empresa de contabilidade. Ao menos eu tinha meu apartamento, e isso era bom. Conseguia pagar o aluguel e beber barato todos os dias. Acho que no fim das contas, quando a gente envelhece e olha pra trás, vemos que todos os sonhos são somente uma grande utopia. Você vai acabar tendo que sobreviver. Ninguém investiria nos meus textos, e a qualidade deles só piorou nos últimos quarenta anos. Eu tinha que ler os poemas que escrevi quando tinha vinte, vinte e dois anos. Os atuais sempre ficavam uma merda. Acho que trabalhar de madrugada não me ajudava, porque eu escrevia enquanto o sol nascia. Eu não curtia sol, ele só serve pra tomar cerveja. E sempre ficava uma pequena fresta na cortina, e enquanto eu batia na máquina, essa fresta parecia se multiplicar, e meu texto perdia (e muito), em qualidade. Bom, eu tinha que ver o lado agradável da vida. Transava com uma bela mulher, tinha drinks e ainda batia textos, mesmo que eu os julgasse como sendo uma merda. Tomei uma grande caneca de café.
Samy saiu do banho, pegou um pão com manteiga. Caralhos, eu tinha virado escravo de buceta, só podia ser por isso que eu estava com ela. Afinal de contas, ela era linda. E quando vestia aquele shorts curto, com aquela regatinha sem sutiã. Eu comeria ela na mesa. Comeria ela agora, logo depois do banho. Mas ela queria sair.
- Vamos more, vamos. Eu como no caminho – ela pegou na minha mão e saímos.
Eu sorri. De fato, meus sonhos estavam morrendo juntos com meu fígado, mas a vida ainda tinha uma parte positiva.

2.

Chegamos na pracinha. Antes, eu precisava resolver um problema.
- Espere aqui Samy, vou ali e já volto.
- Tudo bem – ela disse, sentando e cruzando as pernas.
Olhei um pouco as pernas de Samy, eram mesmo lindas. Depois lembrei que tinha algo pra fazer. Em frente à pracinha tinha um desses botecos sujos. Comprei uma latinha de Itaipava e voltei pra praça. Logo que cheguei, senti o olhar de reprovação de Samy.
- Porra Carlos, você acordou morrendo e já vai beber de novo?
- Sim, já me sinto bem melhor – eu disse, batendo no meu estômago, sorrindo, e abrindo a latinha logo na seqüência.
- Mas está muito cedo...
- Veja isso – eu disse, mostrando minha mão tremendo – eu preciso beber, ou vou tremer pra cacete, e isso me irrita muito.
- Faz quanto tempo que você não bebe? – ela perguntou, cruzando os braços.
- O tempo em que eu dormi não conta né?
- Claro que não!
Fiz alguns cálculos. Pelo que me lembre, eu fiquei bebendo sozinho até as 3h. Ai fumei um baseado, e por volta das 4h fui pra cama. Uma hora. Acordei às 10h. Olhei meu celular, ele marcava 11h30. Duas horas e meia.
- Duas horas e meia – eu disse, dando uma grande golada.
- Você precisa beber o tempo todo? Estar comigo não é o suficiente?
- Baby, me escute – olhei firme nos olhos dela, estava sentindo uma briga por vir – você me conheceu bebendo. Gosto de estar com você, mas também gosto de beber. E consigo fazer os dois.
- Eu sei disso Carlos – ela deu uma recuada, acendendo um cigarro (mentolado, que eu odeio) – mas sabe, eu vejo que você está morrendo com isso. Eu te amo demais pra você morrer assim. Quero que você fique bem.
- Tudo bem – eu disse, acendendo o meu bom e velho Marlboro vermelho – Mas entenda Samy: você não vai me mudar. Muitas mulheres tentaram isso, e não vai ser agora, com malditos cinqüenta e cinco anos que vou fazer isso. Um dia eu posso estar morto. Ou não. Acho que vivo bem, gosto de beber e assim prosseguirei.
- Ok, me fale sobre as suas mulheres. Você mal toca no assunto.
- Acho desnecessário. Mulheres vêm e vão. Quando menos percebemos aparece outra.
- Mas eu quero te salvar disso, quero ser a diferente de todas. Quero ser sua prioridade.
Eu gargalhei, jogando a cabeça pra trás. Foi um erro, mas tudo bem. Traguei meu cigarro enquanto ela me olhava espantada. Bebi mais cervejas e lancei.
- Samy, entenda: gosto muito de você, mas eu ordeno minhas prioridades de forma diferente. Coloco sempre a bebida e a escrita na frente das mulheres. Porque sempre fiz isso, e isso sempre me salvou de tudo o que eu passei. Você é nova, vai passar por muita coisa ainda.
- Eu não acredito que estou atrás da bebida – ela disse, tragando aquele cigarro de merda – isso é inaceitável. E o sexo, vai dizer que não gosta também.
- Claro que gosto! Mas acho que você reparou que nunca flerto com outras mulheres, nem te trai. Porque eu sempre prefiro beber.
- Sim, você sempre foi fiel.
- Eu repito esta maldita frase fazem trinta anos – eu traguei meu cigarro e tomei o resto da cerveja, amassando a latinha – “É mais fácil eu te trair com a bebida do que te trair com outra mulher”
- Nossa você não sabe como é uma merda ouvir isso...
- Se você não aceita como eu vivo, acho melhor terminarmos.
Ela estava espantada. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Eu era a escória, mas ainda assim me dava ao luxo de chutar elas de vez enquando. Não me senti bem ao ver ela chorar, mas eu queria viver minha vida do meu jeito, não do jeito dela. Ela era uma grande mulher, certamente arrumaria um bom cara, com uma boa grana, carro e planos. Eu era um velho alcoólatra, que sonhou a vida inteira com alguma coisa que nunca se concretizou. Em resumo, eu era o fracasso, e a única coisa que eu tinha era meu brilho nos olhos e minha bebedeira.
- Mas... Mas... Como assim? – ela disse, chorando.
- Isso aí Samy. Foi legal enquanto durou. Você é bonita, logo logo arruma um bom cara, com boa estrutura, que não beba e que faça academia – dei a última tragada no cigarro.
- MAS EU QUERIA VOCÊ, SEU MERDA!
- Bom, se você não aceita como eu vivo, você não me quer. Me desculpe Samy.
Ela ainda me olhou por um tempo. Ficamos ali sentados. Ela chorava. Eu não me sentia bem, mas segurei o choro. Até que ela limpou o rosto, se levantou e disse.
- Pego minhas coisas na sua casa amanhã.
- Tudo bem...
E assim ela foi embora, virou as costas. Eu somente a veria quando ela fosse buscar as coisas, depois disso nunca mais. Não sou do tipo que fico amigo de ex-namorada, elas precisam de espaço. “Mais uma, mais uma... Acho que vou morrer sozinho mesmo...” Pensei um pouco melancólico. Não sei o que ela faria no resto do sábado, mas sei o que eu faria. Voltei ao boteco, sentei no balcão e disse “Campeão trás uma Itaipava de garrafa pra mim por favor. Meu dia foi difícil”

Carlos Reis


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