quarta-feira, 23 de abril de 2014

Investimentos, autógrafos e planos



Me recordo que era um dia frio, tudo o que sei é que aquele dia foi mesmo marcante pra mim. Era vinte e três de julho de dois mil e vinte um, eu estava próximo de completar trinta e um anos, mas vamos manter com os trinta ainda, por favor. Pois bem, eu tinha trinta anos, estava com Tammie a sete. Não sei exatamente como isso aconteceu, simplesmente um dia foi levando ao outro, um mês ao outro e um ano ao outro. Quando abrimos nossos olhos já eram mais de sete anos. Até que eu estava inteiro, o médico me recomendou que eu bebesse uma dose de vodka ao dia, nada além disso. Meu fígado, outrora fodido, estava recuperado, e eu podia beber destilados com moderação. Além disso, nos últimos cinco anos estava bebendo pouco, por falta de tempo. Tammie estava bem também, apesar das drogas e do álcool (no caso dela, de leve (o álcool)), ela estava com seus vinte e cinco anos, e estava bem. De fato, nem eu nem ela éramos mais tão bonitos quanto a sete anos atrás. Mas tudo bem, acho que a aparência, depois de sete anos, não é algo tão primordial quanto é no primeiro ano. Então, naquele dia, após longos anos de investimento eu iria pegar as chaves do meu apartamento. Não havia comentado nada com a Tammie. Digamos que gosto de fazer surpresas. Peguei as chaves, telefonei pra ela. O dia era sábado.
- Oi more, tudo bem? – eu disse, já entornando uma latinha de cerveja.
- Tudo sim, e você?
- Também. Hey, estou de folga hoje. Me encontra na estação Santa Cecília, vamos tomar uns drinks.
- Tudo bem, eu também não tenho nada pra fazer hoje – ela disse – acho que uns drinks cairão bem.
- Sim amore, até mais.
- Beijos, até.
Peguei as chaves. Entrei no apartamento. Olhei. Bom, estava tudo certo. Segui rumo ao metrô, bebendo minha cerveja, e apesar do dia frio, estava satisfeito. Com uma blusa velha e surrada, esperei ela na catraca da estação. Não tardou muito e ela chegou. Nos beijamos. Fomos a um pequeno bar ali perto. Bebemos e comemos, e tivemos um bom momento juntos, como sempre. Pagamos as comandas, eu ainda mantinha segredo.
- Vamos ali rapidinho, quero te mostrar uma coisa – eu disse, comprando uma cerveja em lata.
- Tudo bem – ela disse, ainda sem saber de nada.
Fomos ao meu apartamento. Entramos, abri a porta. Ela viu um apartamento completamente vazio, pequeno, mas interessante. Aconchegante. Bem legal mesmo. Tinha um quarto, o banheiro, a área de serviço, a cozinha e uma sala pequena. Mas o legal da sala é que ela tinha aquele balcão, aonde poderiam ser servidos drinks. Apesar de pequeno, era um bom lugar. Apesar de tudo, eu havia investido em algo, e isso me deixou feliz.
- O que você achou? – perguntei, sorrindo e entornando mais cerveja.
- Você comprou isso, alugou?
- Comprei, está tudo quitado.
- Mas porque você não me avisou nada seu puto?
- Hmmm... Surpresa! – eu disse rindo e bebendo mais.
- Porra, legal mesmo. E a mobília? – ela disse, olhando e andando pelo lugar.
- Chega na segunda. Comprei tudo já. Pedi as contas no meu emprego ontem.
- VOCÊ O QUE? – ela disse, espantada, me olhando bem fundo nos olhos.
- Bom, vou me dedicar à escrita.
- Mas você era chefe lá.
- Eu sei, e isso me proporcionou comprar esse apartamento. Mas agora vou me dedicar ao meu sonho. Meu livro será publicado semana que vem.
- Caralho Carlos... Estou sem palavras.
- Oras, só diga que no fim das contas tudo se acertou.
- Tudo bem, no fim das contas tudo se acertou.
- Obrigado Tammie – dei um beijo de leve nela, peguei uma garrafa de vinho que estava no chão da cozinha.
- Mas e seu trabalho, você ganhava extremamente bem. Tem alguém pro seu lugar já?
- Sim, tem um cara que promovi. Ele vai dar conta.
- E essa semana, o que você vai fazer?
- Bom, vou beber e escrever um pouco. Comprei um colchão inflável. Tenho um notebook. Vou ficar por aqui, e a mobília chega na segunda. Até lá durmo no chão e bebo vinho quente. E escrevo.
- Entendi. E onde vai ser publicado seu livro?
- Ali na livraria Saraiva da Paulista. Aqui do lado. Vou lá autografar alguns.
- Porra, que legal Carlos! – ela me disse, me beijando de leve.
- Sim. Bom, acho que temos um bom tempo juntos. Se quiser morar aqui, pode morar... – eu disse, entornando vinho, com medo da resposta.
- Calma baby, calma... Mas juro que vou pensar.
- Tudo bem more, tudo bem.
Eu havia investido muito tempo e dinheiro naquilo. Eu trabalhava cerca de dez horas ao dia, mas havia valido a pena. Escrevia no tempo livre. O estresse do meu trabalho era terrível. Entrei como assistente, fui subindo e subindo, o dinheiro foi entrando, mas eu nunca fui de esbanjar. Quanto maior o cargo, maior o estresse. Portanto, guardava uma boa grana. Comprei o apartamento a vista. Só pagaria o condomínio e as contas. E agora sim eu poderia viver somente da escrita. Eu escrevia desde os meus dezesseis anos. Com vinte e cinco comecei a publicar em revistas marginais. Com vinte e sete comecei a fazer leituras. Ganhava uma grana (que não era muita), mas isso ia fazendo de leve minha fama na cena da literatura marginal. Todos os grandes escritores me pediam um livro, mas eu tinha que pagar muitas contas, portanto me sujeitava ao meu emprego. Agora, eu gastaria bem pouco, poderia viver disso. Fiz uma grande divulgação do meu livro na internet, eu tinha blog, página no FaceBook e os caralhos todos.
Naquela noite fiz questão de ir pra um motel... De domingo pra segunda eu dormiria no colchão inflável, e isso me daria mais uma idéia pra escrever, com certeza. Aquele monte de casa cheia de nada, o nada cheio de futuro. No motel foi bem divertido, eu havia mandado minha empresa à merda, estava com uma boa grana. Resolvi aproveitar, afinal de contas, Tammie esteve comigo nas piores horas, nas horas em que a gente tomava A Outra e tomava Vinho Cantina do Rio Bonito. Ela pegou os primórdios do fracasso, assistiu (e ajudou) a tornar todo aquele investimento em realidade. Naquela noite dormimos numa boa cama, pedimos drinks caros, além da foda que sempre era uma novidade, apesar dos sete anos juntos (mas sempre muito boa pra ambos).
Domingo de manhã ela foi pra casa dela, eu pra minha. Enchi meu colchão inflável, me deitei. Olhei pro teto, sorri. Peguei mais uma garrafa de vinho. Abri e comecei a beber. Bati um texto. Muitos com a minha idade, no meu cargo profissional, achariam isso uma derrota, menos eu. Eu estava muito bem. Finalmente, após alguns anos eu faria o que sempre sonhei. Me dedicaria à escrita. Acordaria ao meio-dia, sem estresses, bateria meus textos, faria minhas leituras, escreveria livros, contos, poemas, qualquer coisa, qualquer coisa que me libertasse serviria naquela hora, e em qualquer hora pelos próximos mil anos.

2.

Uma semana morando naquele pequeno apartamento. Sem trabalhar. Sem me preocupar com muita coisa. Comprando comidas baratas, drinks baratos. A escrivaninha me ocupava horas e mais horas. Eu batia textos o dia todo. Eram horas e mais horas. Começava a escrever sempre depois das 19h. Mas acordava cedo, geralmente às 14h, comia alguma coisa de leve, bebia cervejas. Lavava a louça, fazia almoço por volta das 18h, comia, lavava a louça. Bem, durante esse tempo eu me mantinha entretido com jornais, TV e internet. Leituras no geral me enchiam, por vezes recebia alguns poemas por email (repito, eu tinha uma certa fama), e lia, apenas pelo fato de querer dar um feedback pros leitores. Geralmente eram bons, mas parece que as pessoas “masturbam” demais as idéias. Verborragia, exageros, simétrica. Bom, eu sempre odiei tudo isso. Por isso sempre aconselhava o contrário, pra que fosse o mais simples possível. Volta e meia, durante a semana, eu saia com Tammie, e naquele dia batia apenas um poema de leve. Os contos eu deixava para os dias em que minha compania eram garrafas de vinho. E aquela semana foi simplesmente linda. É como se o sonho houvesse sido realizado. E sim, ele havia sido realizado. Eu morava bem, vivia do que eu queria, bebia todos os dias, ocupava meu tempo com coisas que me interessavam. Não pegava metrô, nem trem, nem nada. Não tinha preocupações. Era eu e a máquina, como foi em quatorze anos. Mas dessa vez, eu podia me dedicar cem por cento a ela. Ela estava feliz, e eu também.
Havia chego o grande dia. Eu estava nervoso. A sessão começaria às 18h. Pra passar o nervosismo, tomei uma boa dose de vodka com coca-cola, depois levei três garrafas de vinho ao lugar. Tammie disse que iria, e por isso reservei um bom lugar pra ela, na fileira da frente. Sim, eu leria uns poemas, depois eu ia autografar os livros. Fui a pé para lá, era perto de casa, carregando uma mochila com alguns poemas impressos e garrafas de vinho. Tammie iria direto do trabalho. Cheguei suando, fui ao banheiro e troquei de camiseta, além de jogar uma boa água no rosto. Dei uma golada no vinho, acho que eu estava pronto.
Quando saí do banheiro vi uma multidão (eram umas cem pessoas, julgo como multidão). Meu editor, Eric, me cumprimentou antes que qualquer pessoa pudesse me ver.
- Fala Carlos. Tá pronto cara?
- Não – respondi, virando o vinho direto do gargalo.
- Hahahaha, tudo bem, vai dar tudo certo. Tammie está ali, no lugar que você pediu pra ela – ele apontou, estávamos muito de longe. Eu nem vi ela, mas acenei positivamente.
- Valeu cara. Preciso de um copo na mesa.
- Tudo bem, vai lá. E me dê as garrafas, leve uma só. O resto eu levo pra você conforme você for bebendo.
- Ok – respondi, pronto pra ser abocanhado por aquela multidão.

3.

Passei pelo meio do corredor, as pessoas me reconheceram. Um cara com trinta anos, aparência de quarenta, não querendo estar ali. Na verdade queria, mas com um medo desgraçado. Passei por Tammie antes de subir no palco, levantei a garrafa pra ela, pisquei o olho esquerdo, ela sorriu. Subi as escadas e me sentei.
- Meu nome é Carlos Reis. Vou ler alguns poemas. E essa maldita garrafa vai estar do lado deles.
Coloquei a garrafa de vinho no canto da mesa. Abri a mochila, peguei os papéis. Ouvi alguém gritar, do fundo.
- NÓS SABEMOS QUEM VOCÊ É!
- Excelente então, já sabem que vão ouvir merdas e me ver bêbado! – respondi – Cadê a porra do copo!? – berrei.
Um copo apareceu. Enchi ele com vinho, enquanto a platéia ria ainda da minha sentença anterior. Dei uma boa golada. Olhei a platéia. Tammie estava ali. Alguns dos meus ídolos estavam ali também. Isso fez eu dar uma boa golada. Paulo de Freitas, Eduardo Pinheiro e também tinha o genial Lucas Venancio. Bom, não me restava nada além de começar a ler aquelas merdas.
Comecei com poemas mais reflexivos. Parti pros de comédia. Eu não leria nada de amor naquele dia, era um dia de comemoração. Eu queria a platéia animada. Li muitos poemas engraçados. Eles berravam de rir. Até meus ídolos. Eu só ia bebendo. A garrafa dois chegou. Retornei aos reflexivos. Bebi mais e mais. Voltei pros de comédia. Havia matado duas garrafas de vinho em quarenta minutos. Odiava os aplausos. Eles aplaudiam a cada poema lido. Eu só fazia um gesto com a mão do tipo “tudo bem, tudo bem, calma, parem com isso”. Acho que foi uma boa leitura. E era grátis. Quem comprasse o livro, tinha direito a assistir a leitura. Eric achou bom assim, e o que ele falasse, por mim estava acertado.

4.

Terminei a leitura, todos estavam satisfeitos. Eu teria um intervalo de trinta minutos até que organizassem tudo pra sessão de autógrafos. Me surpreendeu em plena segunda-feira o número de pessoas que estavam por ali. Desci do palco, Eric subiu e disse ao microfone “Daqui a trinta minutos começamos a sessão de autógrafos. Obrigado”, passei por Tammie, ela se levantou, me deu um beijo e disse.
- Foi genial amor, como sempre.
- Obrigado Tammie, obrigado...
Nisso, Paulo, Eduardo e Lucas chegaram em mim também.
- Porra Carlos, você foi muito bem – disse Lucas.
- Sim, estava daora man, rachei o bico – Paulo adicionou.
- Parabéns, sem mais – e pra me deixar mais encabulado, Eduardo finalizou.
- Valeu caras – eu disse, abraçando os três – se não fossem vocês, eu nem estaria aqui. Hey, vamos comer alguma coisa, o que vocês acham?
Todos responderam positivamente, passamos ali do lado, tinha um Habib’s. Pedi um chopp, eles também, Tammie também, além de umas esfihas. Comemos, como amigos. Rimos de algumas situações. O olhar de Tammie ainda era o mesmo de sete anos atrás. E isso pra mim era um alívio, eu ainda via honestidade no olhar dela. Adorava quando ela sorria pra mim, eu retribuía o sorriso. E os caras? Bom, nada a declarar. Meus ídolos estavam na estréia do meu livro. Me senti uma virgem. Daquelas de quatorze anos, que tem as bucetas molhadas. Sei lá, parece que todos aqueles anos de trabalho estressante estavam valendo a pena. Eu iria ganhar uma boa nota com a venda daqueles livros. Eu estava longe de ser um dos grandes autores nacionais, mas tinha uma boa vida.
Os trinta minutos haviam acabado. Deixei Tammie e meus colegas ali, bebendo mais. Eu teria que autografar uns livros. Me retirei, Tammie disse que cuidaria da conta, sai e fui de volta pra livraria. Ainda tinha uma garrafa de vinho, isso me ajudaria a autografar de forma completamente errada.

5.

Me sentei, coloquei a terceira garrafa de vinho na mesa. Era uma grande fila, todos com o meu livro “Notas de um Jovem Frustrado”. Peguei um copo, servi vinho. Eric sussurou no meu ouvido.
- Temos muita gente aqui. Sei que você está bêbado, mas evite papear demais, tudo bem?
- Ok Eric, ok – eu disse, pensando “que se foda, se eu quiser papear eu vou papear”
A fila prosseguia. Eu tinha trinta anos (ainda não eram trinta e um), a maioria das pessoas que liam minhas coisas eram bem mais novas. Cerca de vinte anos, ou ainda, quinze anos. Eu autografava e dava goladas de leve no vinho. Volta e meia alguém me perguntava alguma coisa. Como um cara de uns vinte e um anos.
- O que você aconselha pra quem está começando, Sr. Reis.
- Senhor é o caralho.
- Tudo bem Carlos.
- Bem melhor... Bom, tenta meter bastante. Não tenha medo das coisas. Beba até o seu fígado parar. Use drogas. Escreva pra você, nunca escreva pros outros. O crítico mais importante do que você escreve é você mesmo.
- Obrigado Carlos!
- De nada jovem – eu disse bebendo mais vinho.
A fila estava ainda longa. Até que muita gente estava comprando aquela merda. Não sou capitalista, mas a cada pessoa que passava com meu livro em mãos eu pensava “bom, mais algumas pratas na minha conta”, sim, porque uma parte ia pra editora, outra pra mim, outra pro Eric... Mas estava feliz com aquilo tudo.
Uma jovem, acho que tinha uns dezoito anos, no máximo, passou com seu livro.
- Você é o novo Bukowski! – ela disse, batendo palmas de leve e sorrindo, extasiada por estar ali.
- Não sou nada. Estou longe dele. Mas obrigado pelo elogio – eu disse, entornando mais vinho.
- Quero passar uma noite com você.
- Mas porque, você nem me conhece...
- Tudo o que você escreve é muito erótico. Quero ver como você é na cama.
- Desculpe baby – bebi mais vinho, enquanto já ia assinando o livro – mas estou comprometido.
- Cadê a aliança? – ela perguntou, com uma risada safada.
- Não preciso.
- Vou te mandar fotos de mim nua.
- Tudo bem, muitas mandam, obrigado e continue lendo a minha merda.
Ela saiu rindo. Assinei mais algumas dezenas de livros. Era cansativo. Meu vinho estava no fim. Finalmente terminei a linha. Os últimos autógrafos foram pra Lucas, Eduardo, Paulo e Tammie. Obviamente que caprichei nisso. Escrevi um poema pequeno pra cada, além do meu autógrafo. Eu tinha a capacidade de improvisar poemas do nada (não contos), e isso que fiz com eles.
Eu estava exausto, mas feliz. Isso valia mais do que um dia de trabalho. Melhor do que bater cartão. Com trinta anos eu estava realizado. Meu pai demorou vinte e cinco anos além disso pra se tornar realizado.
Eric me agradeceu, fui embora com Tammie. Naquela noite ela dormiu em casa.
- Vou morar contigo – ela disse.
- Tudo bem... – respondi, tomando uma cerveja.
- E se der errado?
- E se der certo? – retruquei.

Ela sorriu, deitou no meu ombro e dormimos nas nuvens naquele dia.

Carlos Reis

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