sábado, 4 de janeiro de 2014

O assassinato



Ela me conheceu na época em que eu jogava muito poker, muito mais do que agora. Seu nome era Letícia. Letícia não era nenhuma garota acima da média. Na época, seios fartos, nádegas pequenas e bem desenhadas, coxas torneadas, uma barriga meio de "bosta parada na água", mas que eu apertaria fácil enquanto metesse nela. Belos pés (eu não reparo nos pés de uma mulher sempre, mas os delas eram mesmo bem bonitos), ao contrário das mãos, sofridas, de quem lavava louça pra caralho todos os dias. Um rosto bem comum, com dentes comuns, e todo o mais comum. Mas bonito. Enfim, eu tinha 25 anos, era jogador profissional de poker, ela tinha acabado de fazer 18, estava na flor da idade. Eu nunca fui um grande jogador, eu ganhava o suficiente em alguns torneios pra pagar a minha bebida e minhas contas, mas coisa de leve, nada de muito exagero, nada de casas na praia e Iphones de última moda. Mas ainda assim eu estava muito bem pra um garoto da minha idade. Sempre jogava valendo dinheiro. Haviam meses em que eu ganhava muito dinheiro, outros nem tanto, mas a vida ia seguindo de forma honesta. Letícia. Sim, eu fiquei um bom tempo com ela, chegamos a cogitar um namoro, ela era boa de cama. Me lembro da nossa primeira conversa como se fosse hoje, estávamos ambos numa festa, na casa da minha ex-ficante (que havia se tornado amiga), a Carlinha (sim, acabei virando amigo dela... Deprimente, mas a gente não controla isso). Ela estava meio bêbada de St. Remy, eu bebia vodka com Coca. Ela me abordou, na verdade.

- Oiiiii... Você que é o Carlos? - ela me disse, cambaleando.
- Depende. Posso ser como posso não ser. Porque?
- Nada, só te achei gatinho e perguntei sobre você pra Carlinha. Ela me disse que você chamava Carlos.
- Bom, nesse caso sou sim - eu disse, abrindo um sincero sorriso - Desculpe, minha fama não é muito boa, sabe como é hahahah
- Sim, eu sei que tua reputação É UM LIXO, e que você BEBE, FUMA E JOGA PRA CARALHO, mas eu não ligo. Te achei gatinho, isso que importa.
- Hahahaha, saquei - eu cocei as costas da cabeça, demonstrando claro desconforto com o elogio dela (não costumo receber elogios, fico mesmo tímido quando isso acontece) - mas e aí, o que você faz aqui?

Daquela pergunta se desenrolou um bom papo, ela era uma grande garota. Acho que, até aquele momento, só havia ficado com grandes garotas. Eu sempre fui um traste, mas sempre dei sorte com as mulheres. Sempre de uma boa aparência, e de uma inteligência acima da média. Letícia era assim. Na época, eu escrevia muita coisa, além de jogar poker, e quando mostrei meus textos pra ela, ela adorou, me chamou de gênio e tudo mais, o que eu nunca cheguei a ser. Tivemos um caso de cerca de uns 7 meses, mas nunca assumimos um namoro, mais por ela do que por mim, eu fui apaixonado por ela (como pela maioria das mulheres, eu me apaixonava muito fácil nessa época da minha vida, eu era jovem e carente... droga), mas ela nunca foi por mim. Quando terminamos meu mundo caiu, perdi muito mais dinheiro no poker, me faltava concentração pra jogar, e meus textos pareciam calcinhas de seda com freadas de bicicleta, eram ao mesmo tempo emotivos e sujos. Foi uma péssima fase da minha vida, mas como tudo, como tudo, acabaria por passar. E passou.

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Quinze anos se passaram desde que estive com Letícia. Eu já tinha 40 anos. Ainda jogava poker, mas ganhava bem menos dinheiro, eu ganhava mais com meus textos, eu havia finalmente me tornado um escritor "razoável", e vendia meus textos pra algumas revistas marginais, que somente os jovens liam, jovens que cheiravam cocaína e bebiam pra caralho, e se achavam donos do mundo. Tsc tsc tsc, mal sabiam eles o que a vida lhes reservava, eu já sabia. Eu jurava que eu ia morrer antes dos 30, não consegui, depois jurei que ia morrer antes dos 40, também não consegui. Eu era somente mais um daqueles tiozinhos de boteco, que bebem todos os dias, mas ficam lá, firmes e fortes. A diferença é que eu não era um tiozinho de boteco, eu bebia sozinho em casa enquanto batia no computador alguns poemas (e com sorte alguns contos) marginais. E se você acha que eu bebia com estilo, vai se foder! Eu bebia a vodka mais barata do mercado, nessa altura nem Balalaika era, ela se chamava Komaroff e tinha gosto de limão com alcool Zulu. Enfim, minha vida parecia estagnada, eu não construi nada nesses anos, e nem tinha o plano de construir, eu nunca pensei em filhos, casamento e nem nada. Morava num quarto pequeno, mas perto do centro, pagava barato, bebia meu dinheiro, escrevia bêbado. Às sextas e sábados a noite eu jogava poker, às vezes ganhava um dinheiro, às vezes não, mas meus amigos de poker sempre estavam por ali. Minha vidinha seguia de forma bem honesta desse jeito, e eu não tinha nada pra reclamar dela.

Foi naquela tarde em que eu bebia e lia um pouco de Kerouac que a campainha tocou. Me levantei, coloquei meu copo na mesinha de centro, meu cigarro no cinzeiro entrou em repouso também, atendi de forma despretensiosa.

- Letícia!? É você? - eu disse da forma mais clichê possível, mas foi inevitável.
- Sim Carlos, sou eu. Como vai você?
- Bem bem... Entre. - eu disse, ainda embasbacado

Ela entrou, se sentou no sofá. Ela estava mais velha, sim, mas ainda estava linda. Ainda era a mulher que veio me xavecar numa festa a anos atrás. Olhei ela de cima a baixo, e instantaneamente me apaixonei de novo. Servi uma dose de vodka com suco de limão pra ela, que foi aceita de bom grado. Ela colocou o copo em cima da mesinha de centro, me sentei numa cadeira de frente pra ela, enquanto ela estava no sofá.

- Carlos, vim aqui por um motivo específico - ela disse, entrelaçando os dedos.
- Pois então fale mulher! - eu disse, atônito, e já entornando mais vodka pela garganta.
- Não sei como dizer isso, mas... Eu preciso que você mate meu marido! - ela disse, e virou seu drink também (mas só até a metade do copo).
- Oi!!!!???? - agora eu estava ainda mais espantado.
- Sim, é isso. Não curto rodeios, você sabe que não curto. Preciso que você faça isso pra mim.
- Mas cara... Porque isso!? - eu entornei mais vodka, isso pra mim era pesado demais.
- Ele me bate, e bate na minha filha. Não aguento mais...
- Ok, mas e o divórcio? Deve haver uma forma de resolver isso, não é possível!
- Ele disse que se eu me separar dele, ele me mata, e mata minha filha... Estou sem escapatória - ela bebeu mais do drink, e já dava sinais de tremedeira.
- Ok, mas e a polícia? - eu tentava ser sensato.
- Ele me disse que se eu me meter com a polícia, ele me mata também... E minha filha. Porra Carlos, você não acha que eu pensei em todas as possibilidades!? Realmente não tenho escapatória!
- Entendi. Mas porque eu, porque não um matador de aluguel, ou algo do tipo!? Cê sabe que eu nunca tive talento pra essas porras, eu não mato nem mosca, sou um covarde filho de uma puta!
- Você sempre foi o cara mais porra louca que eu conheci. Nesses quinze anos em que estivemos separados, não conheci ninguém tão louco como você - eu não sabia se me sentia lisonjeado ou ofendido nessa hora - e por isso que vim atrás de você. E também sei que, você mesmo sendo essa MERDA que é, é ainda um bom sujeito, que sempre vai querer o bem das pessoas...
- Não exagere chuchu, não exagere... - interrompi.
- Ok, mas ao menos o meu bem você quer, né seu puto!?

Aquela pergunta me fodeo, porque sim, eu queria o bem dela... Porra, eu havia me apaixonado por ela de novo. Se eu fosse o herói dela, havia a possibilidade dela voltar comigo, sei lá, e eu pensar em ter uma família, ao menos a filha ela já tinha, mas eu tomaria como minha, me dedicaria mais aos textos e menos ao alcool, e seria um bom chefe de família. Era loucura demais, era sim, matar outra pessoa, isso sim seria muita loucura. Nunca havia passado pela minha cabeça uma coisa dessas (apesar de eu sempre expressar meu desejo pelas pessoas mortas, o que era verdade, mas matar alguém, isso sim era algo treta pra caralho), mas pesando na balança... Eu não sabia! Precisava pesar as coisas, organizar as ideias. Caralho!

- Beleza, mas como eu mataria ele? - perguntei, entornando mais vodka.
- Eu tenho o plano todo, relaxa, você só precisa ter coragem pra colocar ele em prática.
- Ok Letícia, ok... - eu disse, preocupado, mas apaixonado.

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Me encontrei com Letícia eram 19h em frente à sua casa. Ela estava até que bem tranquila. Eu? Eu estava preocupado pra caralho, só isso. Ela veio com aquele balançar de corpo lindo (que ela sempre teve).

- Carlos, seguinte. Espere meu sinal do outro lado da rua. Fique sentado ali na sarjeta, sei que essa é sua especialidade (sim, era verdade, já dormi mais nas sarjetas do que nas camas). A hora em que eu te der o sinal, você entra. Beleza?
- Beleza - eu disse, já tomando vodka, eu nem sabia que porra eu ia fazer, era melhor estar bêbado no processo.

Aguardei cerca de 40 minutos, quando vi um belo carro chegar em casa. Era um daqueles importados SUV, daqueles caras que tem os carros grandes por terem os pintos pequenos, acho que o marido de Letícia tinha o pinto pequeno, aliás, certeza que ele tinha o pinto pequeno, vai ver que por isso que ela queria ele morto. Um homem com um bom porte entrou pela porta da frente. Assisti a um belo jantar pelas largas janelas da cozinha, me pareciam uma família feliz, era aquela coisa que eu nunca tive. Isso sim era o tipo de coisa que eu nunca tive, e que eu achei que nunca teria, afinal, eu estava velho demais pra coisa toda. E cansado demais pra casar com essas garotinhas do mundo, que mal sabem porra nenhuma da vida. A comida servida quente no prato, todos sentados à mesa "e eu numa sarjeta, bebendo vodka hahahha" eu entornei mais vodka enquanto pensava na minha desgraça.

O jantar acabou, eles foram todos à sala. Dei um tempo na vodka. Eram cerca de 21h25 quando Letícia apareceu de novo na janela da cozinha, sinalizando pra que eu fosse na casa, pra que eu entrasse. Me levantei, entrei pela porta da frente. Encontrei o marido dela caído no sofá, desmaiado.

- Que porra que você deu pra esse cara!? - eu perguntei, atônito.
- Nada, ele só bebeu até desmaiar... Como faz na maioria dos dias.
- Saquei, saquei... Bom, e aí, o que fazemos?
- Preciso que você amarre ele nessa corda, e que puxe ele... Vai parecer um suícidio, ele vai se enforcar. 
- Caralho! Como você é doente! - eu disse, e agora eu entornava vodka de novo, FODA-SE.
- Oras, é o plano perfeito... Nem todo suicida anuncia sua morte.
- É verdade, quem anuncia geralmente arrega...
- Pois é. Agora pegue aquela corda, amarre naquela viga e coloque ele lá. - ela me disse, apontando pra uma viga na cozinha, que sim, parecia ser bem resistente, e pra uma corda em cima da mesa de jantar, que sim, parecia ser bem resistente também.

Amarrei a corda na viga, por um momento me senti mal, eu estava matando um alcoólatra, estava matando alguém da minha "espécie", é como se um suricato matasse outro suricato, ou um orangotango matasse outro orangotango. Mas as mulheres nos cegam muitas vezes. E outra, ela arquitetou tudo, só precisava de alguém com culhões pra puxar a corda, e com um pouco de força. E pra isso, eu era perfeito, eu estava tão bêbado que enfiaria uma gaita no cu de um elefante sem esperar uma música pra isso. Amarrei o coitado lá, puxei a corda, vi ele subir. Nisso ele acordou, gritou um pouco. Ahhh sim, a filha estava dormindo, ela não ouviu nada, e se ouviu não acordou. Mas não teve muita resistência. Nem olhei nos olhos dele nessa hora, seria doentio demais. Pronto, ele estava morto.

- Muito obrigada Carlos! Você foi mesmo um grande AMIGO - Letícia me soltou.
- Ok ok... Talvez possamos sair qualquer dia pra tomar um café, sei lá - eu disse, esperançoso pra caralho, eu era o herói dela.
- Hahahaha não Carlos, valeu, mas te vejo como um AMIGO, e somente isso.
- Ok - de cabeça baixa, sai pela porta da frente.

Eu havia sido jogado pra zona da amizade mesmo após ter matado o marido dela. Merda. Todo esse esforço pra PORRA NENHUMA! Me senti um lixo. Pensei em entregar ela, mas eu iria de cúmplice, o que seria melhor era aceitar a derrota e chorar. E voltar ao poker e aos textos marginais, e ao meu quarto pequeno no centro. No fim das contas, todos os sonhos não passam de utopias.

Zaratustra


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